MARIA DA GRAÇA ALMEIDA

Poema da volta

O trem a balançar me levava,
seguindo a quente manhã.

Eu carregava na bolsa,
biscoitos e uma maçã.
As casas corriam lá fora;
também o campo e a flor.

Tudo era verde no campo;
tudo na flor era cor!
E assim correndo comigo,
nem ao menos olhavam o trem,
atordoados, sentindo,
o balanço e o vai e vem.

Trens, que seguem ao norte;
trens, rumando ao sul;
uns, em preto e prata;
outros, pintados de azul.
A viagem fazia-se longa...

Eu, já um tanto enjoada,
ouvia do trem o apito,
soando-me feito um grito!

E o trem resfolegante se ia...
Na paisagem, o olhar eu perdia.
Meus pés, com certo inchaço,
mostravam um ser em cansaço!

Finalmente, adormeci.
Foi sono férreo, profundo,
mas ouço a voz que me chama:
- Moça, já é Pindorama!

Acordei assustada, eu juro!
Era tarde, fazia-se escuro.
Tão grata fiquei nessa hora,
por não me chamarem: senhora!

É que quando deixei a cidade,
era jovem e saí sem vontade.
Agoram voltando senhora,
de volta, tenho a mocidade!

Por isso chamada de moça,
pelo guarda do trem que sorria,
digo ainda que estranho lhe soe:
- Seu guarda, que Deus o abençoe!

 

Flores

Nascerei cravo e jasmim
na plátéia verde em flor.

Sob as palmas do alecrim,
cantarei mais viva a cor.

Renascerei margarida,
num canteiro ornamental.

Declamarei reflorida
um perfume natural.

Rirei riso que amealha
até a flor que me feriu.

Valsarei lírios e dálias,
numa paz  primaveril.

 

Lápis Coloridos

Perfilados, apontados,
estão todos bem guardados
numa caixa tão bonita,
desenhada e com fitas !

São eretos, são brilhantes
coloridos, elegantes!
Têm o corpo de madeira,
têm a cor na cabeleira !

O azul colore o céu,
o verdinho aviva as folhas.
Pra pintar um bom painel,
o tom fica a sua escolha!

Tenho um sol brilhante e belo
com o lápis amarelo!
Lápis preto escurece,
e o desenho entristece!

Com o branco passo apuros,
mas, às vezes, nele aposto,
sua cor, em fundo escuro
quando vejo, sempre gosto!

 

Pipoca

Pipipipipipoquinha...
que chuvinha mais gostosa!
Corro logo pra cozinha,
nem disfarço... sou gulosa!

Pipipipipipoquinha...
grita o milho da pipoca!
Quente é o fundo da panela,
óleo ardente o sufoca.

Esfriando na janela,
já branquinho e com sabor,
o grãozinho da panela
tranformou-se numa flor!

 

Que Traça sem Graça!

Uma traça pequenina,
na estante do vovô,
sem a  sua permissão,
uma casa conquistou.

Lá num livro de oração,
fez tremenda confusão
quando, um dia, resolveu
entregar-se à refeição

As letrinhas foi olhando,
decidindo qual comer,
pois sem muito apetite,
não sabia o que escolher...

S e p a r o u  um  I MAGRINHO,
e comeu um PEDACINHO!
Quem sem fome, muito come,
tão-somente é o homem.

Terminada a refeição,
procurou um lugarzinho
que, com muita precisão,
a coubesse direitinho!

Encontrou a Letra L
e achou-a ideal,
com assento e encosto,
pra um cochilo bem  legal!
Toda traça que se preza,
folga MUITO! É normal!

Da letrinha, ao levantar-se,
por um triz não foi ao chão,
deu risada ao abaixar-se
e girou feito um pião!

Foi usando a letra N
como escorregador,
coloriu-a de vermelho
preferiu-a desta cor!

Es
cor
re
ga,

so
be
e
des
ce....

e o cansaço acontece,
esticando a letra U,
uma rede aparece!

Bem mais tarde, já com sede,
levantou-se dessa rede.
Fez o C virar Caneca,
tomou água, a sapeca!

E chegando ao fim do dia,
de barriga tão vazia,
uma letra RECHONCHUDA,
nessa hora ela queria.

Escolheu  a  letra O,
por ser ela tão GORDINHA!
Ficou  muito  satisfeita,
ao sentir-se mais  CHEINHA!

E à noite, sonolenta,
com o corpo sem pijama,
procurou, calma e lenta,
nova letra como cama.

Dessa vez, a letra H
foi a  letra escolhida,
pra DORMIR TRANQÜILAMENTE,
sem ficar tão ESPREMIDA!

Mas, chegando a madrugada,
sem coberta e com FRIO,
a sentir uns ARREPIOS,
foi correndo arrancar
da letrinha do  titio,
o tracinho que é um fio
pra poder se esquentar!

Desmontando a letra T
No seu fio ela se enrola,
e pra dela não soltar
a danada usa cola!

E, assim, a traça intrusa
foi vivendo o dia a dia,
destruindo cada letra
de f-a-t-i-a em f-a-t-i-a,
não ficando preocupada
e nem mesmo envergonhada,
porque só o que queria
era estar bem instalada,
mesmo numa casa alheia,
mesmo em meio à poeira!

E foi tanto o mau uso,
tão folgado, o abuso,
que o livrinho de oração
foi perdendo a função.

O vovô religioso,
quando um dia foi rezar,
viu que as letras do seu livro
começavam a faltar!

E o  livro,  esse  coitado,
pela traça maltratado,
pareceu-lhe nessa  hora,
só um queijo... bem...furado...

Meus amigos esta história
acabou, chegou ao fim
e do livro tenho agora,
o que o avô orou por mim.

ou

O vovô, sem mais demora,
pra acabar com esta história,
atirou seu livro fora,
e hoje ora de memória!

ou

Terminando este conto,
deixo aqui meu desaponto,
pois, vovô já foi embora
e nem leu minha história!

ou

O seu livro, alguma traça
talvez queira visitar
e com graça ou sem graça,
sei que o irá logo estragar

Ao leitor :

Escolha um dos finais,
aquele que mais o encantar,
não gostando de nenhum,
faça um outro... irei gostar

 

Cheiro da Infância

Sobre a mesa, na fruteira,
provocante, a manga.
Manga engorda.
Deixo-a. Que inerte envelheça
e de velhice, apodreça.
Abstenho-me dela e de quilos a mais.
Passo bem sem seu sabor.
Sem o perfume, não.
Apanho-a. Cheiro-a levemente.
O olfato nada me devolve.
Deito-lhe, amassado, o nariz.
Aspiro profundamente. Nada.
Hoje, é inodora, a manga.
Seu perfume perdeu-se no tempo.

Queria, recuperando-lhe o cheiro,
resgatar parte da infância,
infância cheirando à manga.
Impossível.
Lastimo que não se possa
fotografar os odores.
Lamento não ser mais criança.
Recoloco-a na fruteira.
Manga engorda. Cheiro, não.
E em não o sentindo,
vejo para sempre perdido,
o longínquo e adocicado
perfume de um pomar
ensolarado.

 

Bruxa

Minha bruxa é brasileira!
Mora no meio do mato,
não usa tênis, de fato,
no pé, nem mesmo sapato.
Jamais provou coca-cola,
no inglês, a língua enrola,
nunca mascou um chiclete,
vírus não pôs na Internet.

Fuma cigarro de palha,
estranho pó, não espalha,
desconhece o tal do antraz,
de maldade, é incapaz;
não possui televisão,
bombas, só no São João;
nunca o braço fez asneiras,
minha bruxa é brasileira!

Jamais viu homens na lua,
nem, sacrifícios de rua;
nunca voou em vassouras,
só sua "cuca", alto, voa.
Não remexe o caldeirão,
jamais teve a intenção,
fogo só lhe sai das mãos,
em direção ao fogão;
não separa as bandeiras,
ela é mesmo brasileira!

 

A Bruxa

Velha má e horrorosa,
rude, seca, mal amada,
ela é tão poderosa,
mesmo feia e desdentada!

Verrugoso e adunco,
seu nariz, no caldeirão,
vai cheirando os ensopados
de lagarto e escorpião.

Há quem jure tê-la visto
na vassoura bem montada
a voar, o velho mito,
ressoando gargalhadas.

Dita a velha tradição
que, depois de seis irmãs,
a seguinte nasce bruxa,
esta é a maldição!

Hoje, em muitos povoados,
vilarejos ou cidades,
sempre há uma mulher
a fazer muitas maldades.

Curiosa a examino,
procurando-lhe a verruga
mas, às vezes desanimo,
ela só é nariguda!

 

Fechadura I

Ou vejo a lua
e fico calada,
ou olho a rua
e não faço nada,
ou a fechadura
cravada na porta
induz-me à loucura
e pouco se importa.
Com pouca figura,
tranca-me a porta
e em casa segura
a dor que me corta.

 

Fechadura II

O buraco da porta
tudo recorta,
a sala, o quarto,
a cozinha, o chão.

Ao buraco da porta,
nada importa,
o dia, a noite,
a cor da estação.

O buraco da porta
tudo comporta:
amor, alegria,
dor, traição.

O buraco da porta
a nada reporta:
tempo, lugar
gente, ação.

O buraco da porta
apenas transporta
a vida da casa
em pequeno vão,
e, mudo, suporta,
na valsa sem asas,
o fogo sem brasas
da pouca emoção.

 

Maria Mortalha

Gosto das Marias
colocadas por Deus
em minha trilha,
tanto, que resolvi
agregar a elas,
mais algumas delas.
Primeiro, crio a Mortalha,
numa terça chuvosa,
de madrugada.
À seguir moldo a Preta
com a gota tão solta,
a dor e a careta.
E, enfim, pinto a Maré,
que bem nesse dia,
esqueceu-se na fé!
E feito crianças,
feito meninas,
hoje, passeiam
entre os pilares
que agora sustentam
as mais doces mimas.

 

Maria Maré

Entardecida, Maria Maré,
plantada no chão, firmada na fé,
trazia o pé fincado na areia,
a impedir a maré de cheias mais cheias.

Nos olhos brilhantes, duas luas inteiras,
no peito maduro, a vontade e meia:
- Que Deus me acate, atenda e acuda,
só hoje e sempre lhe peço a ajuda!

E Deus, que lhe dava a boa mãozinha,
nunca a deixava na praia sozinha,
com todo cuidado, zelo ou desvelo
trazia-lhe a água só pelo joelho.

Até que um dia, Maria folgou
e bem nesse dia a Deus não rezou!
Maria, a lua, fitou nesse instante
e o mar se achegou, então, ondulante,

Com força, as ondas se avolumaram,
bravas e impunes mais espumaram,
líquidas línguas lamberam o solo,
querendo deitar, de Maria, no colo.

Rugindo, o mar galgou-lhe as pernas
e pôs-se alargado em gotas eternas,
incauto, molhou-lhe o xale, a saia,
subindo às casas e ruas da praia.

Hoje as águas de vez soberanas
abundam com os pingos que ainda emanam
da estátua de sal que chora saudade,
compadecida da antiga cidade.

A lua no céu sorri zombeteira
e exalta o dia em que, sorrateira,
enlevando Maria, distraiu-lhe a fé,
fazendo perpétua a cheia maré.

 

Antigos Carnavais

Onde estão os pierrôs
e as dengosas colombinas,
que nos carnavais enfeitavam
o meu tempo de menina?

Aonde andam as bruxas
e as princesas encantadas,
que nos salões desfilavam,
como em conto de fadas?

Aonde trotam os cavalinhos,
que bem trago na lembrança,
rodopiando em desalinho,
assustando as crianças?

Onde dançam as bailarinas,
em saias armadas e finas,
sapatilha, na perna, amarrada,
sorrindo de boca pintada?

Aonde andam os mascarados,
que sutis nos cortejaram?
Alguém tão bem o disse:
- Mascaram-se na velhice!

Onde estão todos os confetes,
que em cascatas coloridas,
choviam das jovens mãos,
salpicando, da rua, o chão?

Nem ao menos sei dos momos...
mas, se eu fosse fada ou gnomo,
dos carnavais, com certeza,
resgataria a pureza!

Porque hoje, na verdade,
longe dos bailes antigos,
só sei da bruxa saudade,
que triste arrasto comigo!

 

Minha Terra

Lá na terra onde nasci
há mais terra, há mais chão,
há mais mato, há mais grão.
Há amores mais amigos,
há amigos mais antigos.

Há um céu tão mais aberto,
há uns bichos mais espertos!
É tão longe, muito longe,
essa terra onde nasci
e ainda que distante
e mesmo eu tão inconstante,
dela nunca me esqueci.

É uma terra diferente,
de alegria atrevida,
onde o povo é mais quente,
onde as faces têm mais vida.

Lá na terra onde nasci
não há dias sonolentos,
há o riso mais desperto,
há um rio correndo atento,
há um trem que cedo apita,
há um trem que chega lento!
Há garotas que não brigam
com moleques barulhentos.

Lá na terra onde nasci
as vizinhas são amigas,
as amigas, meio irmãs
e em mãos sempre entregam,
com bom cheiro, com tempero,
empanados, com carinho,
os segredos das manhãs.

 

Cinza

Tudo vem com a faísca,
um pequeno pisca-pisca,
em seguida, a labareda
reluzente lambe acesa!

Vem primeiro uma luzinha,
débil, fraca, vã, fininha,
pra tornar-se então mais forte,
fogaréu de grande porte.

A faísca, sonho azul,
doce canto de bulbul,
ao tintar-se de vermelho,
da ilusão, amplia o espelho.

Mas, enfim feia a fumaça
vai subindo e lenta passa.
Fraca a flama arrefece
e o calor desaparece.

Nessa hora causa dó
o amor na escuridão!
Dele pouca cinza só
foi o que restou ao chão.

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