PAULO SETÚBAL |
Derradeira Saudade
Paixão
fugaz... Ventura passageira...
Rosa que não colhemos da roseira,
mas que esteve, no galho, ao nosso alcance.
Ah! Quanta vez, num desespero mudo,
eu quedo-me a cismar naquilo tudo,
que encheu de sol nosso cruel romance!
Bendigo
ainda os beijos que maldizes,
que abriram na minha alma cicatrizes,
que encheram de ambrosias nossa boca.
Só me consola, nesta dor pungente,
lembrar que te adorei, perdidamente.
Lembrar que me adoraste como louca!
Mudaste
muito, eu sei... Mas, com certeza,
nas horas de saudade e de tristeza,
em que a alma chora e o coração nos trai,
hás de pensar em mim de quando em quando,
com lágrimas nos olhos, relembrando,
toda essa história que tão longe vai!
Foi nesse grande amor
Foi
nesse grande amor, quase noivado,
que floresceu o sonho mais doirado
das tuas ambições, dos meus desejos.
Mas ai! Tanta afeição, tantas loucuras...
O idílio que tecemos entre juras,
o poema que sonhamos entre beijos...
Toda
essa história ingenuamente bela,
essa gentil, romântica novela,
que ainda de saudade se perfuma...
- Tudo isso se desfez num só momento,
como um rosal onde batesse o vento,
e as rosas despencassem uma a uma!
E
eu sei que um dia, no murchar dos anos,
quando já velha, bem velhinha fores,
puseres-te a lembrar nossos enganos,
dirás, com uma lágrima sentida,
que foram esses cálidos amores,
a página melhor da nossa vida!
Só Tu
Dos
lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram,
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!
Mas tu - que rude contraste! -
Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
Só tu, nest'alma, ficaste,
De todas as que eu amei...
Árvores Tristes
Eu,
nestes campos, longe do tumulto,
Amo essas tristes árvores que crescem
Por sobre as margens dum arroio oculto,
Ouvindo as águas que cantando descem...
Gosto de vê-las à tardinha, envoltas
Numa suave e mística tristeza,
Olhando os rolos das espumas soltas
Que encrespam o lençol da correnteza.
Tristonhas plantas! Árvores sombrias!
Como se as torturasse estranha mágoa,
E as compungissem fundas nostalgias,
- Procuram consolar-se à beira d'água.
Oh! vós que amais os campos, nunca as vistes?
- Desconsoladas, trêmulas, chorosas,
Pelas barrancas dos arroios tristes
Debruçam as ramagens silenciosas...
Que importa o sol, que importa a chuva e o vento,
Se sempre as mesmas ânsias as consomem?
Talvez - quem sabe? - nesse desalento,
Palpite e sofra o coração dum homem!
Talvez nessas folhagens, nesses ramos,
Torturados de angústia e desconforto,
- Sem que a vejamos, sem que a compreendamos,
Soluce a alma de algum poeta morto.
Ai, não turbeis a misteriosa mágoa,
A imensa nostalgia em que se abismam;
Deixai-as em silêncio, à beira dágua,
Essas tristonhas árvores que cismam...
À Beira do Caminho
Por
essas tardes plácidas do campo,
- Tardes azuis de firmamento escampo,
Eu vou, través de longos carreadores,
Sentar-me num barranco, ermo e distante,
Sentindo o fresco aroma penetrante
Que vem da madressilva aberta em flores.
Tudo me entrista e punge nestas terras!
Os mesmos cafezais. As mesmas serras.
A mesma casa antiga da fazenda,
Que outrora viu, quando éramos meninos,
Nossos amores, nossos desatinos,
- Toda essa história descorada em lenda!
Quanta saudade! De manhã bem cedo,
Saíamos os dois pelo arvoredo,
De alma contente e exclamações na voz.
Como éramos apenas namorados,
E andássemos, a rir, de braços dados,
Os camponeses riam-se de nós!
Era dezembro. Florescia o milho,
Verde e glorioso como o nosso idílio.
Que lindas roças! Que estação aquela!
Toda a velha fazenda parecia,
Com sua larga e rústica alegria,
Mais cheia de aves, mais ruidosa e bela!
Ainda guardo, intata, na memória,
Aquela ingênua e deliciosa história,
Que foi o meu e o teu primeiro amor.
E ai! que recordação, que duro travo,
Lembrar que eu fui o teu rei o teu escravo,
Saber que fui eu teu servo e teu senhor!
E cismo... Cismo... A tarde vai tombando.
De lado a lado, claras, azulando,
Destacam-se as colinas no horizonte.
Tristonha, a várzea na amplidão se perde.
Lá em baixo um bambual sombrio e verde.
Um fio dágua. Uma arruinada ponte.
Assim, ao pôr do sol, triste e sozinho,
Sentado num barranco do caminho,
Sem que ninguém meu coração compreenda,
Olho a mata, olho os campos, olho a estrada
Ouvindo a melancólica toada
Que chora, ao longe, o piano da fazenda...
A Forasteira
Dissera-me
o barbeiro da vilota,
Que essa elegante, essa gentil devota,
Que freqüentava assim as ladainhas,
Também quisera, em busca de bons ares,
Passar o mês das férias escolares,
Na mesma terra onde eu passava as minhas.
E ali, na vila, nessa pobre aldeia,
Tão incolor, tão rústica, tão feia,
Povoada de caboclos indigentes,
A forasteira, com seu ar touriste,
Com seu chapéu de plumas, com seu chiste,
Chocava o povo e deslumbrava as gentes!
E eu, que vivia a padecer nesse ermo,
A definhar-me, torturado e enfermo,
Nas nostalgias dessa vila odiosa,
Eu bem sentia, ao ver essa estrangeira,
Que na minh'alma, pela vez primeira,
Brotara a flor duma paixão furiosa...
A Vila
Lembro-me
bem dessa vilota rude,
Onde eu me fui, sem gosto e sem saúde,
Buscar um poiso para os meus cansaços.
Que terra triste! Triste e sertaneja:
A escola, a hospedaria, a antiga igreja,
E a capelinha do Senhor dos Passos...
Na esquina, em frente à Câmara, o barbeiro,
Logo depois, num colossal letreiro,
A "Loja Popular" do velho Lopes.
E é bem no largo da Matriz que fica
A sempiterna, a clássica botica,
Com seus reclames de óleos e xaropes...
Ah! Foi aí, nesse ermo de tristeza,
Nessa terreola fúnebre e burguesa,
Tão sem encantos, tão descolorida,
Que eu fui viver, com lágrimas e flores,
No mais cruel amor dos meus amores,
A página melhor da minha vida!
Certa Vez...
Certa
vez... Vá, não cores desse jeito!
Eu era um estudante de direito,
Tu eras uma simples normalista:
Podíamos, portanto, meu tesouro,
Fazer, como fizemos, sem desdouro,
Essa loucura que hoje te contrista.
Com que emoção - recordas? - com que gozo,
Eu vinha te esperar, vibrante e ansioso,
Nessas novenas de plangências cavas.
E como um cavalheiro que se preza,
Timbrava em te levar, depois da reza,
Até ao portão da chácara em que estavas.
Certa vez... Vá, não cores desse jeito!
Era de noite. Arfava-nos o peito.
Ardia em nós um lânguido desejo,
Tomei-te as mãos... Sorriste... E aí, num assomo,
As nossas bocas, sem sabermos como,
Famintamente uniram-se num beijo!
Escândalo
Era
costume, à tarde, em frente à Escola,
Por entre os homens graves da terreola,
Bisbilhotar-se sobre a vida alheia.
Nas rodas que tratavam tais assuntos,
Aquela história de passearmos juntos
Era o supremo escândalo da aldeia!
E o chefe, e o juiz de paz, e o boticário,
Teciam o mais negro comentário
Ao nosso ingênuo amor, todo feitiço!
O próprio padre, um santo e velho cura,
Dizia ao ver-nos: "Eis a má leitura!"
"São os livros de Zola que fazem isso..."
Mas nós, como pastores de Virgílio,
Vivendo então num descuidoso idílio,
Sorríamos dos toscos provincianos:
E em plena aldeia, desdenhando apodos,
Passávamos de braço, entre eles todos,
Na glória dos que se amam aos vinte anos!
Fim de Viagem
Venho
a sonhar contigo... E, no meu sonho,
Vendo o arraial bucólico, risonho,
Onde floriu essa paixão feliz...
Com que saudade, com que gosto amargo,
Relembro a tua casa em frente ao Largo,
Que tu chamavas "Largo da Matriz...".
Vejo-te ainda, lá nesse povoado,
Tua cestinha de costura ao lado,
Perdida em sonhos de felicidade.
E o trem, enquanto assim eu cismo, aflito,
Entra, a bufar, com enervante apito,
Pela cidade adentro... Oh, a cidade!
Suas ruas. Vielas. Bairros proletários.
Rasgando o azul, ao longe, os campanários,
E as chaminés das fábricas e usinas.
Vivos letreiros, no alto, em letras largas.
Aqui - vagões; depósitos de cargas;
Pontes, guindastes, máquinas, cabinas...
Mas eu, no entanto, pensativo e mudo,
Passo por tudo, indiferente a tudo,
Bem longe tendo o espírito daqui;
E vejo apenas - que visão tranqüila! -
Tua longínqua e solitária vila,
Donde, chorando, esta manhã parti...
Idílio
"Vamos?"
disseste... E eu disse logo: vamos!
Ia no céu, nos pássaros, nos ramos,
Uma alegria esplêndida e sonora;
E tu, abrindo ao sol, como uma tenda,
Tua sombrinha de custosa renda,
Partimos ambos pela estrada afora...
Eram pastagens largas, eram roças,
Carros de bois, currais, barreadas choças,
E rústicos galpões de pau-a-pique;
Só tu, nessa bucólica simpleza,
Com teu "tailleur" de casemira inglesa,
Punhas uns tons de mundanismo chic.
E a poeira, e o sol queimante, e a dura estrada,
Nós, papagueando, sem sentirmos nada,
Seguíamos num sonho encantador:
É que a felicidade, como um vinho,
Fazia-nos andar pelo caminho,
Tontos de gozo e bêbedos de amor!
Os Colonos
Lá
vem o dia apontando...
Que afã! Já todos de pé!
Ruidosos, tagarelando,
Vão os colonos em bando
Para os talhões de café.
À luz do sol que amanhece,
Por montes, por barrocais,
Por toda a parte esplandece,
Com sua esplêndida messe,
O verde dos cafezais!
Começa o rude trabalho.
Que faina honrada e feliz!
Inda molhados de orvalho,
Flamejam, em cada galho,
Os bagos como rubis.
Trabalham. Que ardor de mouro!
Todos derriçam café.
Parece um rubro tesouro,
Que cai, numa chuva de ouro,
Dos ramos de cada pé.
Ao meio-dia, aos ardores
Do alto sol canicular,
Os rudes trabalhadores,
Ao longo dos carreadores,
Põem-se todos a cantar.
Pela dormência dos ares,
Sob estes céus cor de anil,
Cantam canções populares,
Que lá, dos seus velhos lares,
Trouxeram para o Brasil.
Aqui, um forte italiano,
Queimado ao sol do equador,
Solta aos ventos, belo e ufano,
Num timbre napolitano,
A sua voz de tenor!
Há uma terna singeleza
Nas trovas que um outro diz;
Um rapagão de Veneza
Tem, no seu canto, a tristeza
Das águas do seu país.
E uma sanguínea espanhola,
De grandes olhos fatais,
Em baixa voz cantarola
Uns quebros de barcarola,
Magoados, sentimentais...
Que cantem!... Essa cantiga,
Brotada no coração,
Seja a prece que bendiga
A terra que hoje os abriga,
A pátria que lhes dá pão!
Sinh'Ana
Sinh'Ana
é uma velhota quitandeira,
Comadre e amiga desta vila inteira,
Rica nos anos, rija na saúde
Que vive toscamente ao pé da estrada,
Numa casinha, simples e barreada,
Dum pitoresco delicioso e rude.
Ah! Quanta vez, nessas manhãs vermelhas,
Cheias de aromas, de canções, de abelhas,
Nós dois, numa travessa caminhada,
Não vínhamos ali - que bom passeio! -
Ver a frescura, a paz, o casto asseio,
Da humilde casinhola ao pé da estrada!
E quanta vez também (que ação profana!)
Doirávamos a toca de Sinh'Ana,
Com beijos e carícias romanescas,
Enquanto a velha, a cândida velhinha,
Voltando ingenuamente da cozinha,
Trazia um prato de broinhas frescas...