ROSA CLEMENT

Cabocla  

Nasci cabocla, tenho cor morena,
pois Deus quis por na mata essa costela,
quando ajustou meu tempo em novena,
deixando minha mãe de sentinela.

E disse: "Vou te dar vida serena,
caminhos feitos por minha aquarela,
onde jamais se fere ou se condena,
assim não saberás o que é seqüela.

No útero então chorei por gratidão,
porém os astros em noite festeira,
fizeram Deus mudar Sua intenção.  

Ao vir ao mundo e vê-lo em explosão,
eu precisei ser mais que uma guerreira,
e proteger com garra o coração.

 

Na Ribera

Na tarde ando sozinha
pelo caminho do rio, para ver meu amor,
e sigo sem nenhum pudor
ao prazer dos meus pés descalços.
Com perfume de açucenas,
deixo o sol beijar minha pele morena
e em fogo vou a cantar
uma canção de fêmea....

E assim, perfumada e quente,
chego pela mesma ladeira,
e para ele na ribeira,
livro meu corpo de censuras.
E sem descansar do passeio,
com o vento frio a excitar meus seios,
fito seu rosto sentindo
nas mornas águas os céus descendo...

 

Dizeres de Minha Mãe

Minha mãe dizia que eles
contavam estórias para o boi dormir.
Mas que boi? Na nossa casa
boi no quintal, não havia,
se havia um pouco, a gente comia.

Passava uma nuvem no céu, ela insistia:
vai chover, e logo ela corria
tirava a roupa do sol,
mas se o sol ficava nú,
com as nuvens se cobria...

Ela vivia sempre caçando,
e não perdia a euforia,
pois caçava com um gato,
mas o tal gato a gente não via.

E ela prosseguia.,
Descascava abacaxi invísivel,
trabalhando todo o dia.
"Nao meta a mão na cumbuca,"
e sem saber onde a cumbuca estava,
a gente não metia.

A noite, a gente ajoelhava.
Como uma santa, ela rezava.
a gente fechava os olhos e ouvia:
"Anjo do Senhor, com tuas asas
protege a nós, a nossa casa."
E logo a gente sentia
que o anjo nos envolvia.

 

Bicicletando

Em minha bicicleta vou embora.
Às minhas costas, o sol se entrega.
A noite vem mas sei que demora.
Em minha bicicleta vou embora.
Trilho montanhas, passo da hora.
A noite cai, o sol escorrega.
Em minha bicicleta vou embora,
Às minhas costas, a lua se entrega.

 

Sombra

Sob o sol da manhã,
uma sombra me segue,
com seu longo cabelo solto ao vento.
Eu posso ver seus brincos, unhas longas,
roupa justa, sapatos e bolsa,
até mesmo meu batom de morangos.

Para me seguir,
ela se estica na rua de pedras,
e voa através do lago,
sobe nas árvores descuidamente,
como se tudo no mundo
fosse uma relva macia.

Nós chegamos juntas ao meu destino,
mas ela, que me acompanhou
como um anjo disfarçado
sempre mudo,
de repente desaparece
atrás da cerca de papoulas.

 

Rua das Árvores

"Rua das Árvores," diz a carta...
Imaginei como seria
Que árvores lhe enfeitaria...
Ipês, quaresmas, benjamins,
ou graciosos coqueiros,
dobrando-se para o vento?
Imensas e belas árvores
se insinuaram no papel,
tão branco, em minha mão,
tão verde em minha mente,
de folhas palmadas, ovais,
galhos retorcidos, eretos,
sombreando pensamentos.
Talvez fosse uma rua antiga,
ladeada de velhas casas,
com flores pelas janelas,
e onde se curvavam raízes,
se oferecendo como bancos.
Ah, mas que bosque tão quieto,
que aroma tão intenso,
que a imaginação tão bem traça!
E que momento de abandono!
E como tudo é melancólico,
quando olho minha rua
sempre assim tão nua...

 

Poço

Quando a velha árvore tombou,
causou um grande alvoroço,
mas deixou um olho d'agua
onde meu pai fez um poço.

Lá dentro sempre caiam
colheres, pratos, brinquedos,
e coisas que nunca se vê:
sonhos, esperanças, segrêdos.

Era onde mães enchiam potes
lavando almas sãs e feridas,
e crianças cantavam em roda
canções jamais esquecidas.

Mas hoje do poço o que resta
são meras memórias que trago,
que em minha mente flutuam
como novas lilies no lago.

 

Precisa-se de Poeta

Precisa-se de um poeta,
para calmo departamento
decorado com tosca mesa;
paga-se por seu pensamento...

Oferecemos uma janela
com um vento que vem do mato,
com visitas de passarinhos,
e um cantinho para o gato.

Pede-se que tenha harmonia,
exponha um variado tema;
na tarde, como um relatório,
envie ao Chefe um poema.

Que encante a moça feia,
do jeito que a poesia dita,
e lhe dê um poema bolado,
pra ela pensar que é bonita...

E para os que já chegam sério,
com o humor que lhe consiste,
escreva um poema engraçado,
porque aqui ninguém é triste.

Se um poeta for aprovado,
um largo sorriso é preciso,
pois tal emprêgo de poeta
só mesmo aqui no Paraíso.

Voltar