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Café Filho, Presidente do Brasil |

Café Filho em foto
oficial, com a faixa presidencial
Reprodução de foto do livro Do Sindicato ao
Catete, 1966, Livraria José Olympio Editora.
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"Não há palavras que possam descrever a minha emoção. A notícia do gesto de desespero do Presidente da República atingiu-me como um raio. Toda a Nação deve estar, como eu, profundamente traumatizada por esta tragédia sem igual em nossa História. Jamais pensei em assumir a Presidência do meu País, por força de preceito constitucional, em condições de um cunho doloroso e chocante. O Brasil deve por de lado, nesta hora, quaisquer sentimentos políticos ou pessoais, para prestar ao Dr. Getúlio Vargas as homenagens póstumas de que ele é credor, pelos altos e inestimáveis serviços que prestou à Pátria. Sua Excelência não precisava recorrer a uma atitude tão extrema, que o País deve deplorar com a maior consternação. Dirigindo, neste momento penoso, as primeiras palavras à Nação, faço-o com a alma suspensa. Antes de quaisquer outras manifestações de minha parte, quero desde logo assumir o compromisso de empenhar todas as forças para dar aos humildes a proteção que foi sempre a preocupação máxima do Presidente Getúlio Vargas". Primeira mensagem de Café Filho dirigida à Nação, logo após o anúncio do suicídio de Getúlio Vargas. |

Ministério
de Café Filho. Presentes o Cardeal Dom Jayme de Barros Câmara (à esquerda) e o
Arcebispo-Auxiliar do Rio de Janeiro,
Dom Hélder Câmara (de pé, conversando
com o General Henrique Teixeira Lott), tratando das providências oficiais para a
realização,
no Rio de Janeiro, do Congresso Eucarístico
Internacional.
Reprodução de foto do livro Do Sindicato ao Catete, 1966,
Livraria José Olympio Editora.
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Do Sindicato ao Catete
Na Vice-Presidência, todas as vezes em que manifestava de público a minha opinião, em discursos ou entrevistas, preocupava-me em fixar a linha de orientação que me separava dele. Sempre fiz questão de me conservar independente. Tratava-me o presidente com uma cordialidade elegante e eu procurava corresponder-lhe às cortesias, no interesse do próprio regime. Embora não pertencesse ao quadro dos seus amigos íntimos, creio que lhe dei, no auge do impasse da crise de agosto de 1954, tudo quanto estava ao meu alcance, no sentido de encontrar uma solução. No curso do mandato, nunca subtraí a Vargas a minha colaboração, preocupado em evitar qualquer crise. (...) Na crise de agosto de 1954, movia-me o desejo de propiciar a Vargas um desfecho pacífico e honroso, capaz de abrir caminho a uma política de desarmamentos dos espíritos. Daí a minha iniciativa, em que ofereci a única ajuda de que dispunha: o meu próprio cargo. A última vez que estive com ele foi na antevéspera da sua atitude de extremo desespero. Honrou-me, então, com as demonstrações do seu reconhecimento por minha conduta, não só naquela hora mas também no curso de seu governo. Teve palavras de gratidão e, ao despedir-me, renovou a firme disposição de manter-se em seu posto, com o sacrifício da própria vida. Ninguém lamentou mais que eu o terrível desenlace da crise de agosto de 1954. Depois dos momentos de traumatismo e estupefação que se seguiram à morte do Presidente, não houve quem não se curvasse diante da grandeza trágica do seu gesto, digno dos mais profundos sentimentos de dor e respeito. Pude apreciar de perto a preocupação de Getúlio com as condições de vida das massas trabalhadoras. Perdia-se, porém, nas iniciativas demagógicas influenciadas pelos íntimos. Estou certo de que, se não conseguiu no terreno da política social tudo o que pretendia realizar, não foi por falta de vontade de sua parte. Terá sido em virtude das dificuldades internas e dos reflexos da situação internacional, e pelas influências a que me referi. As dificuldades internas eram, sobretudo, de natureza econômica, a compor uma fisionomia cada vez mais carregada. Não me compete entrar no mérito dos acontecimentos para fazer um julgamento ou apontar inocentes e culpados, na crise de agosto de 1954. Limitar-me-ei a recapitular fatos que são do domínio público e a revelar aspectos inéditos, num subsídio aos depoimentos que já surgiram para a História. Se faço justiça a muitos aspectos da figura de Getúlio Vargas, por havê-los observado de perto e poder, assim, dar o meu testemunho, do ponto de vista político nada me prendia a ele. Eu tinha absoluta liberdade de proceder, e procedi sempre de acordo apenas com a minha consciência. Na manhã de 9 de agosto de 1954, segunda-feira – quatro dias após o atentado da Rua Toneleros – fui procurado ao telefone por Osvaldo Aranha. Desejava o Ministro da Fazenda de Vargas falar-me pessoalmente num encontro urgente. Como a afluência de pessoas, que o superlotava, tornasse o meu gabinete local inadequado, no momento, para uma conversa reservada, prontifiquei-me a ir ter com Osvaldo Aranha no Ministério da Fazenda. Ali o encontrei em companhia do Prof. Edgar Santos, Ministro da Educação e Cultura. Pálido, quase da cor dos cabelos de prata, disse-me à queima-roupa: - A situação é muito grave. Num tom de confidência desagradável, informou: - Aconteceu no Catete uma coisa terrível. Getúlio chamou Gregório à sua presença e o interpelou de maneira tão dura que o preto chorou. Interrompeu-se. Depois, sussurrou: - Tudo indica a participação do chefe da Guarda Pessoal no crime. Até o Getúlio aceita esta hipótese. Imagine... Aranha estava bem informado: íntimo do Presidente, com este palestrara várias vezes nos dias anteriores, no Catete e na casa dos Vargas, à Avenida Rui Barbosa. As notícias eram aziagas, porém Aranha, ao transmiti-las, era o causeur de sempre: versátil, meigo, fértil, homem viajado e vivido, acostumado ao fragor das crises e à voz baixa das combinações. - Tenho um plano capaz de evitar que suceda o pior... - Qual é? – perguntei-lhe, percebendo que ia chegar o verdadeiro (mas disfarçado) objetivo da conferência que promovera. - A fórmula consiste em você entrar imediatamente no exercício da Presidência da República e nela permanecer durante as investigações. - Ótima idéia – aplaudiu o Ministro Edgar Santos, como se já estivesse prevenido. Ponderei-lhes, com desconfiança nordestina: - Estamos diante de uma situação muito difícil, em grande parte agravada pela morosidade das providências. As acusações envolvem o Presidente, alguns de seus amigos e pessoas de sua família. Por fim, discordei reto: - Não, não vejo como possa a minha presença no governo ser uma solução. Além disso... Tencionava perguntar a Osvaldo Aranha: - Assumindo o governo, como poderei punir os membros da Guarda Pessoal e até familiares do Presidente, que é o que, por todas as maneiras, reclama a opinião pública? Não se queria o afastamento de Getúlio porque ele era o Presidente, mas porque, à sombra da autoridade presidencial, fora premeditado e executado um atentado político e estavam sendo apontados como responsáveis parentes seus e sua guardas. Não cheguei a formalizar estas razões a Aranha. Abriu-se a porta do gabinete e entrou, inesperado, José Américo de Almeida, Ministro da Viação, sobraçando uma pasta de couro. Vinha transbordante de papéis e curiosidades. Perguntava pelas novidades, dizendo-se desinformado. Estavam ali o Vice-Presidente e três membros do governo. Era a improvisação não oficial de uma reunião ministerial sincopada. (...) Regressando ao meu gabinete no último andar do Ministério do trabalho, encontrei-o repleto de parlamentares e jornalistas, impregnados de informações sombrias. As apreensões eram cada vez mais densas. Acentuava-se uma crise civil e militar. O motorista Nelson revelara o nome de um participante: Climério, membro da Guarda Presidencial. As diligências desembocavam no Catete, no interior da casa do Chefe de Estado. Depois da interpelação de Vargas, que Aranha me relatara, noticiou-se que Gregório ficou preso no Palácio do Catete e que, destronizado e em desespero, ameaçou suicidar-se. Políticos e militares passavam o dia em reuniões e a noite junto ao rádio e ao telefone, velando em revolucionárias madrugadas. Uma troca de comunicados era como o vento soprar fogo: as autoridades juravam ser implacáveis no apurar o crime e castigar os culpados. Setores das Forças Armadas, da imprensa e de várias entidades exigiam o imediato esclarecimento do fato sangrento. A idéia da renúncia de Vargas ganhava velocidade em certos círculos da opinião pública. A minha ascensão à Presidência despontava intermitente, como um relampejar no temporal. Havia o outro lado da moeda: o perigo de soçobrar regime na ditadura ou na baderna. Logo após o atentado de Toneleros, esperou-se que Getúlio amainasse a cólera pública substituindo o Chefe de Polícia. Lourival Fontes e eu, sugerimos ao Presidente o nome do General Nélson de Melo. A substituição só se fez no dia 10, com uma semana quase de atraso. Em vez de um general, vinha um coronel, Paulo Tôrres, por indicação do Ministro da Guerra, Zenóbio da Costa, sem vínculo com as oposições e desconhecido fora da caserna. Era o enfermeiro que chegava tarde para operação: o tumor crescera demais. A Guarda Pessoal, constituída em sua maioria de profissionais do crime, fora extinta na véspera. Tombara como uma bastilhazinha sem glória. A sua dissolução tornara-se um imperativo, mas repercutiu de maneira desfavorável ao governo, por uma razão evidente: o ato de dissolução da Guarda era a confissão de que o crime fora arquitetado no Catete. Oficializava-se a conclusão de que havia por trás mandantes graúdos. O crime da Rua Toneleros, como fato policial, poderia ser assim resumido: pensando alvejar de morte Carlos Lacerda, os pistoleiros feriram-no, apenas, no tornozelo, indo as descargas fulminar na calçada o Major Rubens Vaz, da Força Aérea. No dia 11, recebi em campo neutro a visita de Lacerda. Através de um companheiro da Tribuna da Imprensa, Murilo Melo Filho, manifestara ele o desejo de conversar comigo. Respondi que o receberia no Senado. Objetou o emissário que seria preferível outro local. Naquele dia, ia almoçar com Olavo Galvão, diretor do Banco do Nordeste, em cujo apartamento, na Cinelândia, estaria por volta das quatorze horas. A entrevista poderia ser lá. À hora marcada, Lacerda chegou para o encontro. Veio uma cadeira de rodas empurrada por oficiais da Marinha. Não o tinha visto ainda depois do tentado. A palestra foi a princípio sobre as circunstâncias do crime; Lacerda fez, em seguida, uma análise da situação. Estivera com o General Zenóbio da Costa. Conviria – acrescentou – que eu desse a entender àquele oficial, por intermédio de alguém, que o manteria na pasta da Guerra se assumisse o Governo. Assim se abriria a possibilidade de cessar a resistência de Zenóbio em defesa de Getúlio. Neguei-me terminantemente e apresentei a Lacerda as razões da minha discordância. Não daria um passo para chegar ao poder. Nem me interessava a Presidência em condições tão difíceis. Muito menos através de tais expedientes. Acompanhava os acontecimentos. Se estes chegassem ao ponto de uma ameaça incontida às instituições, tomaria uma atitude. Não antecipei a Carlos Lacerda que se tratava da proposta, feita poucos dias depois, no sentido da renúncia de Getúlio juntamente com a minha. Assim nos despedimos. O jornalista saiu como entrara: nos braços dos militares, em meio de uma onda de curiosidade popular. No dia 12, Vargas viajou a Minas Gerais, onde proferiu um discurso inesperado, acusando e desafiando os adversários. - Gostei muito. Vossa Excelência passou de agredido a agressor – disse-lhe Gustavo Capanema, que era líder do Governo na Câmara dos Deputados. A resposta de Vargas ao comentário de Capanema exalava euforia: - Influência do clima. Este ar das montanhas faz bem à gente. Risonho e otimista, o Presidente disse aos jornalistas que não havia crise. Rechaçou a hipótese de ausentar-se do poder, onde se sentia firme e tranqüilo. De volta, ainda no aeroporto, incumbiu Lourival Fontes de me chamar. Iria nada menos que revelar a decisão de transmitir-me o Governo! Foi um lance desnorteador. Havia coincidência com a missão anterior de Osvaldo Aranha, ao acenar-me com o poder. Aconteceu numa sexta-feira 13 de agosto, horas depois da prisão de Alcino, matador do Major Vaz, cuja confissão envolvia Lutero Vargas, o filho mais velho do Presidente. Cheguei ao Palácio do Catete às dezessete horas. Vargas recebeu-me imediatamente e não me deixou falar sobre nenhum assunto, pois assumiu logo a iniciativa da conversa. Lembrou que me anunciara a sua visita à Bolívia. Mas não seria já. Acabava, no entanto, de tomar outra deliberação. - Vou passar-lhe o Governo – disse-me, com desconcertante surpresa para mim. Iria para a sua fazenda. Depois, de lá mesmo, faria a viagem à Bolívia. Em tom de cansaço e desprezo, acrescentou: - Talvez nem volte mais a isto. A crise de agosto Depois da
conferência, de manhã, com o líder Capanema e, no princípio da tarde, com
os Ministros da Guerra e da Marinha, fui ao Catete. Cheguei ali por volta
das 16 horas. Fui logo recebido pelo Presidente, apreensivo mas cordial.
Não o deixei tratar de nenhum assunto. Desta vez, assumi o comando da
conversa, entrando direto no motivo da visita. Não havia tempo a perder.
Urgia uma solução, antes que os ímpetos juvenis da oficialidade mais
impaciente e a pressão da opinião pública envolvessem os chefes militares
mais serenos, fazendo a tropa sair dos quartéis para a rua. - Se eu
fosse Presidente – disse a Vargas, pondo as cartas na mesa – também
não aceitaria uma renúncia imposta. Dou-lhe razão. Mas a proposta que lhe
trago é diferente. Reclama-se o seu afastamento e prega-se minha ascensão.
Pois bem. Vamos sacudir a Nação com um gesto: fomos eleitos juntos na
mesma chapa, renunciemos agora juntos no mesmo destino. Será um fato novo,
capaz de cortar a agitação. Escolheremos para o governo uma pessoa
de sua confiança, com a aceitação de todas ou, pelo menos, das principais
agremiações partidárias, a quem caberá a missão de restabelecer a
normalidade. O candidato para aquela sucessão temporária não poderia
ter uma gestação lenta, natural. Não dispensaria combinações feitas com
sentido de rapidez e socorro. E teria de ser um político anfíbio (entre
governo e oposição), plástico em meio das forças beligerantes. Tive a
precaução de levar engatilhados alguns nomes, como os de Osvaldo Aranha,
José Américo, Alberto Pasqualini, Gustavo Capanema, Álvaro Alberto e
Mascarenhas Morais, para a hipótese de uma indagação de Vargas a esse
respeito. (...) A precaução de levar nomes engatilhados não teve
serventia, não chegando eu a mencioná-los, de vez que a conversa não
atingiu tal profundidade. - Você falou a alguém sobre esse assunto?
– quis saber Getúlio, desconfiado, supondo, talvez, que eu estivesse
concertado com algum escalão militar ou civil. - Apenas a três amigos
seus: ao Deputado Capanema e aos Ministros da Guerra e da Marinha –
respondi. – Não fui à Aeronáutica, porque o seu novo titular não parece
ter controle dos comandados. Indaguei de Zenóbio e Guilhobel se estavam em
condições de manter a ordem durante a transição, uma vez posta em prática
a renúncia conjunta. De Capanema procurei saber se o Presidente dispunha,
ainda, de suficiente força parlamentar. De todos esses colaboradores seus,
bem como de outros, ouvidos anteriormente, só recolhi impressões
negativas. É a razão da minha atitude. Creio que não lhe vale a pena
exercer uma autoridade apenas teórica. E há de concordar comigo em que o
País não deve continuar assim à beira da anarquia e da guerra civil.
Tinha na minha lealdade um escudo a desafiar suspeitas. Getúlio
escutou-me, pendurado, pelo olhar, ao teto do Palácio, numa reflexão
mímica, que lhe era quase um cacoete ou uma evasão. Insisti. - Como
sabe, sou um homem pobre. Renunciando, terei de enfrentar dificuldades até
me reajustar. Constrange-me aludir a isto, mas quero demonstrar que
procedo no caso unicamente por espírito público, em face dos perigos que
rondam o Brasil e comprometem o seu conceito no exterior. Bastará de sua
parte uma decisão idêntica, e cessará o tumulto, que já é quase uma
insurreição. Em sua fazenda, o senhor desfrutará do descanso que lhe é
impossível aqui. - Enganam-se os que me acreditam incapaz de renunciar
– retrucou Getúlio. – Estou velho e esgotado. A situação é
realmente difícil. Não contesto o quadro que me traçou. Posso largar isto
definitivamente. Tinha na voz uma amargura tão intensa, que parecia um
pranto seco. Pensou uns segundos e, com ironia, completou: - Irá
buscar-me depois uma patrulha da Aeronáutica... - Isso, não! –
discordei com veemência. - Em tudo isto há muita paixão. - Uma das
condições de nossa renúncia será a garantia de que a sua pessoa ex-Chefe
de Estado nada sofrerá. Eu mesmo me encarregarei de obter das oposições e
das Forças Armadas este compromisso. Qualquer incompatibilidade pessoal
cederá ao imperativo de restaurar a tranqüilidade pública. Vargas era
de índole contraditória. Vislumbrando certa receptividade à minha
proposta, procurei intensificar a exortação: - Lembre-se: não será uma
renúncia forçada, mas espontânea e patriótica. A desordem está aí, como um
círculo que se aperta em torno do seu governo, inquietando e parando a
administração, com reflexos desfavoráveis em todos os setores de
atividades. Ninguém domina os militares em rebelião, a não ser agravando
os acontecimentos e provocando derramamento de sangue. Até no Catete já se
realizam buscas. É nestas condições que lhe apresento uma fórmula para
desarmar os espíritos e proporcionar-lhe um modo honroso de sair da
encruzilhada. Ao aludir às buscas no Catete e à repercussão dos
arquivos de Gregório, ali encontrados, tinha Vargas uns silêncios
consternados, numa expressiva retórica muda. Movia a cabeça, aprovando os
comentários que eu fazia e ruminando a tristeza, a revolta e a vergonha
que sufocava, mas deixava transparecer nos vincos do rosto. Não me pareceu
inútil, ao menos naquele momento, o metralhar dos argumentos. A melancolia
em que se encontrava Getúlio, a sua depressão, a dor moral transbordante,
as palavras de desalento, tudo indicava que, por sua vontade, não
permaneceria no governo. Muito mais que o medo da F.A.B., era talvez a
pressão de alguns amigos e familiares que o mantinha prisioneiro do poder
que, de fato, já não dominava. (...) A mim, Getúlio não fez segredo do seu
desencanto. Mostrara-se comovido, sobretudo ante a alusão à falta de
solidariedade de muitos correligionários. Nem parecia o homem frio e
insensível do retrato de tantos dos seus biógrafos e intérpretes.
Disse-me: - Agradeço-lhe a colaboração. Compreendo a gravidade do
momento. Não tenho apego a isto. Depois de ouvir alguns amigos, dar-lhe-ei
uma resposta definitiva. Saí dali com a sensação de ter deixado alguém
saturado de tudo e de todos. Não fixou prazo. Teve, ainda, jeito de
encaixar uma das suas pilhérias. Despedimo-nos. A consulta aos amigos
referia-se, por certo, aos parentes mais íntimos e aos poucos
colaboradores que ainda lhe restavam fiéis. Sua disposição era claramente
no sentido de aceitar a proposta da nossa renúncia. Dentro de algumas
horas – pensei – estaríamos ambos sem mandato. Regressei ao
apartamento como se já não fosse Vice-Presidente, faltando apenas arrumar
ao papéis e tomar as providências finais para desocupar o cargo e anunciar
o fato à Nação, numa declaração conjunta. Consolava-me a idéia de que
estava prestando um serviço ao País e de que tanto eu como Vargas
sairíamos bem da crise.(...) No domingo, 22 de agosto, fui chamado ao
Catete. Desejava o Presidente receber-me às vinte horas. Longe estaria eu
de imaginar que aquele seria o meu último encontro com o companheiro de
chapa da campanha eleitoral de 1950. Cheguei ao Palácio pouco antes das
oito da noite. Deixara o apartamento com vários visitantes: uns amigos,
outros curiosos, mais ou menos conhecidos, jornalistas e pessoas que, em
face dos boatos, jogavam na minha investidura. Recebeu-me apreensivamente
o Chefe do Cerimonial, Embaixador João Coelho Lisboa, que me levou ao
Gabinete do Presidente. De passagem, vi os jardins e algumas dependências
transformados em trincheiras. Havia soldados por todos os cantos, ocultos
na semi-escuridão, atrás das árvores, das colunas e dos sacos de areia.
Uma praça de guerra, um arsenal. Os ajudantes de ordens e os funcionários
moviam-se em incontido nervosismo. Fui informado que Getúlio conferenciava
com o Marechal Mascarenhas de Morais. Logo depois, seria minha vez. Fiquei
conversando com Benjamim Vargas. Ou melhor: fiquei a ouvi-lo. Estava
agitado, de metralhadora em punho. Só falava em resistir até a morte. Em
meio do excitado solilóquio de Benjamim, chegou o casal Amaral Peixoto,
seguido de comitiva. Alzira Vargas, ao me ver, disparou esta bala envolta
em sorriso: Despertado pela notícia do suicídio de Vargas Adormeci sob os
efeitos da medicação sedativa e hipotensora. Cerca de duas horas mais
tarde, pouco antes das nove da manhã, o telefone tocou – segundo me
informaram. Era um aviso da minha família de que o General Caiado de
Castro desejava falar-me com a maior urgência. No mesmo instante, de
acordo com o que me contaram os que se achavam na Casa de Raimundo de
Brito, o jovem José Félix – em cuja cama eu dormia – indiferente às ordens
de silêncio e às advertências maternais de D. Inês, corria pálido pelas
salas, num inquieto subir e descer de escadas, a gritar nervosamente: -
Papai! Papai! O rádio está dando que o Presidente Getúlio se suicidou!
A primeira reação de Raimundo de Brito e do meu secretário particular,
Oséias Martins, foi de estupefação e descrença. Não, aquilo não era
possível. Mas veio a confirmação, sucinta e tremenda: sim, Getúlio acabava
de dar um tiro no coração. O Brasil era de repente palco da tragédia
imensa e raríssima de um Chefe de Estado que se elimina, fazendo recordar
o caso Balmaceda. Resolveram acordar-me. Sem saber, em pleno sono,
tornara-me eu Presidente da República, dentro de um drama sem precedentes
no País. Procuraram despertar-me devagar, dando-me a notícia aos goles,
com uma cautela tanto maior quanto eu era portador de uma cardiopatia. Ao
recolher-me para dormir, exausto e com a pressão elevada, fora examinado
pelo cardiologista Aarão Benchimol, que comentara para seu colega Teobaldo
Viana, segundo me contou Raimundo de Brito: - Como é que este coração
vai suportar as responsabilidades de um governo numa situação como
esta? Acordei meio tonto, ainda sob a ação de remédios, com o meu
médico e meu secretário particular à cabeceira. Diziam-me que a situação,
ao que parecia, se agravara. Havia mesmo certos boatos estranhos.
Justificavam a iniciativa de despertar-me, informando que várias pessoas
desejam falar-me sem demora. Continuou nesse tom a conversa, enquanto eu
trocava de roupa. Começava a desconfiar que os dois tinham algo muito
grave a comunicar-me, mas não pretendiam fazê-lo de uma vez. Não atinava o
que seria, mas percebi nitidamente que me preparavam para ouvir uma
notícia desagradável. Não chegaram a concluir a missão. Inopinadamente,
irrompeu no quarto, chorando, o General Pinto Aleixo, Senador pela Bahia,
a exclamar com voz embargada: - Café, nunca imaginei que você chegasse
à Presidência da Republica em condições tão trágicas. Abraçou-me em
lágrimas e, então, fiquei sabendo de tudo. O choque fez-me sentar de novo
no leito, perplexo. Por alguns segundos, perdi a noção de quaisquer outros
aspectos do fato, para lhe ver apenas o lado humano. A desesperada
deliberação de Getúlio, a desgraça nacional que representava o suicídio de
um Presidente da República, quem quer que ele fosse, com a circunstância
de que se tratava de um homem intimamente ligado a história do País nos
últimos trinta anos, sem dúvida a figura central de todo aquele período,
que ali de algum modo se encerrava sombria e inesperadamente. Como o
General Pinto Aleixo, não pude reprimir a emoção. Mas logo procurei reagir
para enfrentar a dura realidade. Ao abalo incoercível, provocado pelo
gesto de Vargas, seguia-se o sentimento das pesadas responsabilidades que,
de súbito, desabavam sobre mim. Dei-me conta de que, em virtude da morte
de Getúlio, estava automaticamente investido nas funções presidenciais por
um imperativo da Constituição. Fôramos eleitos juntos pelo povo
brasileiros e eu me tornava titular do cargo de maneira absolutamente
legal, mas circunstâncias imprevistas e atordoantes, que alargavam ao
máximo os meus deveres e as minhas preocupações. Não assumia um governo em
ambiente de festa, ao som de clarins e em meio de flores, mas um poder
amargo, em clima de luto, perigos e incertezas. Acabava de vestir-me,
quando fui atender ao telefone o General Caiado de Castro, que me fez a
comunicação oficial da tragédia com estas palavras: - Sentindo-se
traído, o Presidente suicidou-se. Respondi-lhe que tomasse as
primeiras providências protocolares, entre as quais se previa a
permanência do corpo no salão nobre do Palácio do Catete. Replicou-me
Caiado de Castro que a família Vargas já tinha resolvido colocar o ataúde
no Gabinete Militar, na parte térrea, e dispensava quaisquer honras
oficiais. Declarei-lhe que nesse caso atendesse a todas as exigências da
família. E encerramos o curto diálogo. A recusa das homenagens fúnebres ao
Presidente morto, por parte de seu sucessor, asseguradas em lei, era um
sintoma expresso de hostilidade a quem não tinha culpa nenhuma dos
acontecimentos e até oferecera a própria renúncia para evitar um desfecho
sangrento. Indiferente ao tratamento que recebia, mandei levar ao Catete
uma coroa de flores com os seguintes dizeres: “Homenagem de Café Filho
a seu companheiro de 1950”. Como sucessor de Vargas, precisei traçar
em pleno tumulto as diretrizes do meu Governo. Qualquer passo menos feliz
de minha parte, poderia precipitar o Brasil numa catástrofe de proporções
impensáveis. Rejeitada pela família de Getúlio a participação do novo
Governo nos funerais, não havia por que me deter em suscetibilidades de
caráter pessoal. Problemas de maior importância exigiam a minha atenção
imediata. Eram para mim instantes decisivos, em que precisava lançar mão
de todas as reservas de equilíbrio, capacidade de resolução rápida e
coragem para não recuar em hipótese alguma. Urgia dominar a situação e
avocar o comando dos acontecimentos. Já não podia parar. Não era mais
simples espectador. Tinha agora obrigações a cumprir. Chegou ao meu
conhecimento o bilhete de Getúlio: “À sanha dos meus inimigos, deixo o
legado da minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o
que desejava.” Soube que estas palavras estavam sendo irradiadas a
cada instante e compreendi logo o perigo que encerravam, como fonte de
excitação subversiva e como estímulo a represálias por parte de algumas
camadas do povo, nem sempre devidamente esclarecidas e geralmente
inclinadas a se deixarem levar pela simplicidade espontânea e pura dos
sentimentos. Procurei neutralizá-las através de uma nota oficial redigida
em linguagem adequada ao momento. Assim, a primeira mensagem que dirigi à
Nação, de par com a sincera manifestação de pesar pessoal, continha também
um sentimento político, exprimindo já um esforço para evitar que o País
afundasse na desordem. Tratava-se de uma exortação tranqüilizadora,
destinada a arrefecer os ânimos incitados pelo bilhete e conjurar
quaisquer explorações sobre os propósitos do novo Governo, confirmados
depois na manutenção do salário-mínimo e da legislação trabalhista, bem
como nos critérios gerais por mim adotados na luta contra a inflação e a
carestia de vida, em que se debatiam principalmente as classes pobres.
Determinei que a minha mensagem tivesse ampla divulgação e fosse lida
repetidamente nas emissoras com que pudesse contar o Governo que nascia.
Deste modo, travou-se nos microfones a singular batalha entre o bilhete de
Getúlio e a pequena proclamação do novo Presidente, num dia em que todo o
Brasil estava ao pé do rádio. Mas, daí a pouco, surgiu no noticiário outra
novidade: a carta atribuída a Vargas e apresentada como seu testamento
político, que encerrava, inegavelmente, uma instigação revolucionária,
passou a ser lida, também, quase sem interrupção, não só pelas emissoras
vinculadas ao getulismo, mas igualmente da tribuna do Parlamento e nas
ruas, em comícios de intensa agitação e evidente pregação subversiva.
Responsabilizava pelo drama do Presidente não só seus adversários na
política interna, mas também os Estado Unidos. Procurava, em suma,
despertar o sentimento nacionalista dos brasileiros para uma reação. Era
um estímulo ostensivo à pior das revoluções: a do ódio, a da vingança dos
supostos oprimidos contra imaginários opressores, tendo como base uma
aliança de nativistas e comunistas interessados na luta de dimensões
imprevisíveis contra os estrangeiros. Às emoções da tragédia e à
popularidade de Getúlio, galvanizada pelo salário mínimo, juntavam-se dois
documentos como fatores de um incêndio que parecia difícil de impedir que
se alastrasse. Não sei se alguém pode supor, além dos motivos notórios de
sua atitude, quais os sentimentos íntimos que Vargas abrigava no momento
de sua decisão extrema. Era incontestável que, tendo ou não tais
intenções, o seu trágico gesto trazia, entre outras, estas conseqüências:
uma ameaça direta à ordem e ao regime, ao lado das perspectivas de uma
vindita esmagadora. (...) Em 24 de agosto, apoiado, apenas, no sentimento
da minha responsabilidade, na minha formação democrática e na minha
confiança nas armas naturais da lei, consolidei o meu Governo sem
quaisquer medidas de exceção. No entanto, naquele dia, e não em 21 de
novembro de 1955, a agitação palpitava, sintomaticamente, nas ruas. Nenhum
outro homem no Brasil, além de mim, já assumiu a Presidência da República
em circunstâncias mais penosas e agressivas. Dentro do Catete, o
Presidente morto pelas próprias mãos. Do lado de fora, o pranto coral de
milhares de pessoas, parecendo uma orfandade coletiva. No centro da
cidade, turbas incendiárias, extravasando a sua fúria em atos de
destruição e vindita. Chegavam-me notícias dos distúrbios nas ruas.
Políticos contrários a Getúlio, como Carlos Lacerda, estavam sendo caçados
num clima febril de sede de vingança. Grupos agressivos postavam-se diante
de alguns jornais, em preparativos de empastelamento. Crescia a cada
instante a tensão nervosa, admiti que a agitação apenas começava e se
estenderia ao País. Vieram-me à lembrança acontecimentos históricos,
desencadeados pelo delírio popular. Conhecia a índole pacífica dos
brasileiros, mas não podia subestimar esse fatores: o ineditismo do
suicídio de um Presidente, como fonte de emoções desconhecidas; a presença
dos comunistas com sua técnica revolucionária; os efeitos subversivos do
bilhete e da chamada carta testamento de Vargas e as perigosas
transfigurações a que está sujeito o temperamento de qualquer povo em
instante de exaltação coletiva. Todos os instantes haviam sido de
exaltação, durante a crise de agosto. Na véspera, à noite, durante a
derradeira reunião ministerial, o Catete exibia-se aberto e iluminado. Não
eram luzes de alegria mas de vigília e alarme, sob as vistas da multidão
reunida em sereno cívico nas cercanias. Nessa multidão, que não arredou pé
da sua expectativa e viu clarear o dia defronte ao Palácio, foi
instantânea e radical a metamorfose da atitude hostil. Gritavam pela
renúncia de Vargas e dirigiam-lhe expressões pejorativas. Soprada a
notícia da morte de trás daquelas paredes que espreitavam, as imprecações
transmudaram-se em prantos. Não seria a simples psicologia das massas sob
a influência do impacto da mutação do quadro. Era o sentimento de cada um,
onde quer que se encontrasse inclusive sozinho e dentro de si próprio.
Lembro-me, a propósito, de um homem abastado, das classes produtoras que,
poucas horas antes, raivoso e ensandecido, se dispunha a ir ao Catete. -
É preciso matar Getúlio! Horas depois, desesperado e inconsolável,
banhado em lágrimas, soluçava o infortúnio: - Getúlio matou-se! Na
situação criada pelo suicídio de Vargas, as piores surpresas poderiam
advir. Mas isto, em vez de esfriar o meu ânimo, serviu de incentivo para
que empunhasse com mão firme as responsabilidades inerentes ao cargo que o
povo me confiara e a Constituição me assegurava, como legítimo sucessor do
Presidente em caso de morte. Café Filho
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Governadores eleitos em 3 de
outubro de 1950.
Da esquerda para a direita: Raul Barbosa
(Ceará), Ernani do Amaral Peixoto (Rio de Janeiro) e José Américo de Almeida
(Paraíba),
Fábio de Andrade, Café Filho, Álvaro Maia (ex-governador do
Amazonas), Arnon de Melo (Alagoas), Munhoz da Rocha (Paraná) e Régis Pacheco
(Bahia).
Reprodução de foto do livro Do Sindicato ao Catete, 1966, Livraria
José Olympio Editora.
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