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LENDAS, USOS E COSTUMES IV
Boiadas |
 Festa do
Tropeiro, evento anual realizado em Piquete, SP Foto de Dogmar
Brasilino
- Vem vindo
uma boiada muito grande pela rua de baixo. - Quem foi que
disse? - Foi o Tom Mix, que passou por aí a cavalo tordilha de
seu Anacleto Turco avisando a gente. Assim era o que acontecia
sempre. Sempre havia um Tom Mix um Osmar Valentim ou um Faustino da
padaria do Adriano, para em disparada rua abaixo, distribuir a notícia. A
molecada, que já havia adquirido direitos com a idade ou com a coragem,
podia sair à rua e ficar nas esquinas para ver passar aquele mundaréu de
gado. Os menores e as meninas ficavam às janelas. Lavadeiras, nas
torneiras públicas, pois naqueles tempos não havia água encanada nas
casas, mas somente uma torneira em cada rua, corriam com suas trouxas mal
arrumadas, pescoceando os filhinhos. Galinhas e cães se dispersavam
apressados. E passa a boiada. Primeiramente a tropa de seis burros,
enfeitados com imitação de prataria e com fitas vermelhas na ponta dos
arrouchos, segue a "madrinha" que vem na frente com o peitoral do arreio
tilintilando seus cincerros de vários tons. Depois um tropeiro,
menino-moço, montado meio de banda para refrescar de um lado a pisadura da
longa viagem. A seguir, vem o guia da boiada, fazendo roncar o berrante,
chifre enorme, armado de três outros chifres, e com uma gaita na boquilha.
Dizem que esse instrumento tem a propriedade de acalmar os bois e de
tangê-los pelo caminho certo. E agora vem a boiada, qual uma correição de
formigas, esparramada por toda a largura da rua. Um mar de chifres de toda
espécie e formato. Vai passando. Zebus enormes com seus cupins no cachaço;
mestiços de guzerá com chifres parecendo um par de parênteses; caracus
enfezados e holandeses babosos e pacíficos. E chega a noticia: uma vaca
espantada entra pela porta do bilhar do seu Benedito Elias e espaventa com
seu Arlindo do Grupo e o Benedito Piá, que estavam empenhados numa partida
de cem. É que a malcriada e pouco ortodoxa vaca não sabia que o dono do
bilhar era o delegado de polícia, e só não foi presa porque o Dito Elias,
que também era padeiro, estava desenfornando dois tabuleiros de pães na
padaria anexa. Passou a boiada, mas o povo não arredou pé das esquinas e
das janelas, porque sabia que daí a pouco passaria a "boiadinha" composta
das vacas que pariram durante a viagem, os trôpegos que vêm mancando, os
doentes e os mais velhos, que não podendo acompanhar os demais, vão
ficando, aos poucos, para trás. A poeira assenta-se. A boiada
passou.
 Festa do Tropeiro em 2004 -
Piquete, SP Foto de Lety
- Vem vindo
uma boiada lá de cima. Só que agora é boiada de carneiros. E
de novo um Chico Tom Mix, ou outro qualquer, que dá a notícia. De fato, a
carneirada vem vindo. E um espetáculo que, embora comum, aguça a
curiosidade de todo mundo. Centenas de carneiros, lanudos, sujos e de
cornos retorcidos, passam devagar. Vez ou outra no meio daquela carneirada
branca aparece um carneiro preto, dando-nos a idéia de um mosquito caído
num prato de leite. O final é o mesmo. Lá atrás, devagarinho, vem a
"sucata" composta de velhos e doentes. A criançada vibra com a beleza de
um carneirinho recém-nascido que vem atravessado nos ombros de um tocador
, enquanto a mamãe carneira, enciumada, troteia ao lado. Era assim a nossa
Piquete de meio século atrás. Passagem obrigatória para melhores mercados,
oferecia-nos seguidamente esses magníficos espetáculos. E vinha a "boiada"
de porcos e as tropas carregadas de mantimentos. Pernoitavam num dos
ranchos e saíam pela manhã com destino a outras cidades. Voltavam também
carregados com outros artigos. A mercadoria que hoje é transportada por
essas frotas de caminhões que descem e sobem a serra diariamente, era
carregada em lombos de burros.
 Festa do Tropeiro em 2004 - Piquete,
SP Senhoras da sociedade local participam do evento com fins
beneficentes Foto de Lety
Uma estatística
da época dá como de dois mil mensais, o número de muares que passavam por
nossas estradas. Valia a pena visitar um rancho de tropas. Tínhamos
quatro: o do Zé Rodrigues, no Bairro da Tabuleta; o de Dona Maria da
Silva, onde hoje é a Vila Célia; o de Dona Mariana Relvas, na rua Cel.
Luiz Relvas e o de João de Souza, na rua Maior Carlos Ribeiro. Chegavam as
tropas com quatro ou cinco lotes de burros. Os tropeiros mais caprichosos
faziam questão de arrear cada lote de oito animais com um arreamento igual
e com os muares da mesma cor e tamanho, o que dava identificação para a
tropa. Descarregavam a mercadoria e colocavam-na em um canto, sob a
cobertura do rancho. As cangalhas de outro lado. Enquanto faziam esse
serviço, os burros eram amilhados em bornais apropriados. Nesse ínterim o
cozinheiro preparava o café de tropeiro, isto é, um café não coado efeito
da maneira seguinte: coloca-se no fogo uma lata com água, pó e açúcar nas
doses desejadas. Quando começa a fervura a levantar-se, pega-se um tição
que tenha bastante brasa viva, assopra-se-lhe para tirar a cinza e
submerge-o na água. O pó em ebulição, assenta-se no fundo do vasilhame e
está pronto o café, livre de resíduos, bastando tirá-lo por cima, com uma
caneca. Os animais, livres do arreio, estão soltos no terreiro, à espera
que abram a porteira do pasto. Um se coça no tronco fincado no meio do
mangueirão. Outros se coçam mutuamente. Outros se espojam na poeira
tentando virar sobre o dorso, com as pernas para cima. Uma, duas, três
vezes. Não conseguem. Nós, os garotos, torcendo. Dizem que se a mãe deles
for viva, conseguirão. Se já morta, não. O jantar ficou pronto. O feijão
já veio cozido (feijão pagão) e era só temperá-lo. Arroz, torresmo e um
naco de carne seca assado na brasa. Servem-se em cuietês uns, outros em
pratos de ágata, manchados de preto, esfolados pelo uso. Depois do jantar,
enquanto se cozinha o feijão para a próxima refeição, sentados sobre os
sacos de mantimentos ou acocorados junto ao fogo, discutem o preço
de seus artigos, até a hora de dormir. Precisam descansar porque no outro
dia têm léguas e léguas a caminhar. E descem mais boiadas de bois,
"boiadas" de carneiros e "boiadas" de porcos. E descem mais tropas de
burros e romeiros a cavalo.
 Festa do
Tropeiro Foto de Lety
- Vem vindo
aí uma "boiada" enorme de perus. Mais de mil... - Quem que
falou? - Foi Seu Aristóteles, guarda-fio da Bragantina. Ele
disse que já estão pra cá da Tabuleta. Mais de mil, gente! E de
fato a "peruada" veio. Os mil não passavam de seiscentos, se tantos. Mas
era um espetáculo digno de ser visto. Os tocadores portavam finas varas de
bambu para tangê-los e segundo disseram, já caminhavam há dezesseis dias,
em silêncio completo, sem perder uma única peça. Mas esse silêncio foi
quebrado, porque na esquina da rua da estação um engraçadinho, não sei se
o Paulito do sargento Áureo ou o João Ferpudo, se lembrou de assobiar como
quem chama cachorro. 0 pandemônio tomou conta dos componentes
masculinos que, abrindo o leque da cauda, rodavam nas pernas e estouravam
as bombas do papo... 0 glu-glu-glu não teve mais fim, pois daí em diante
outros moleques imitavam o primeiro, generalizando a confusão. Semanas
depois ainda se comentava o ocorrido.
 Carro de Bois na Festa do
Tropeiro Foto de Lety
Texto de Carlos
Vieira Soares Folclore de Piquete (Pequena Contribuição)
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