A
LINGUAGEM CIFRADA NOS "PONTOS" DE JONGO Maria Virgínia Chambela Costa
(UCB) |
A pesquisa em
questão diz respeito a uma análise da linguagem cifrada nos pontos de
Jongo com a intenção de mostrar a riqueza de linguagem que existe nessa
manifestação folclórica. As manobras estilísticas (Ducrot, 1977) e os
jogos lingüísticos através da mutação semântica das palavras (Giraud -
1975) estão sempre presentes. Em princípio, é primordial que se entenda o
que significa "Jongo". É uma palavra oriunda do quimbundo, língua dos
indígenas bantos de Angola. É um ritmo que chegou ao Brasil- colônia, com
os negros trazidos como escravos para o trabalho forçado nas fazendas de
café do Vale do Paraíba. Os bantos são membros de uma grande família
etnolinguística dos escravos chamados angolas, congos, cambindas,
benguelas e moçambiques e foram os primeiros escravos que chegaram ao
Brasil. A dança do Jongo é de intenção religiosa fetichista, podendo
ser considerada afro-brasileira. É uma coreografia de roda, com movimentos
circulares no sentido contrário aos dos ponteiros do relógio. Dança-se ao
som de dois tambores: um grande"tambu", outro pequeno, "candongueiro"; de
uma "puíta"ou "cuíca". Usam também "guaiás"(chocalhos). Os jongueiros
procuram vencer um ao outro num desafio, através dos "pontos" do jongo. A
dificuldade reside no texto dos pontos, pois são todos enigmáticos e
metafóricos. "Ponto é uma pergunta versificada, cantada, falada ou
declamada que o adversário precisa adivinhar o que seja. Se adivinha ele
"desata" ou "desamarra" o ponto. Os pontos encerram um sentido simbólico
que dá às palavras uma semântica peculiar aos jongueiros, possibilitando o
entendimento entre eles. As frases curtas retratam o contato com a
natureza, o dia-a-dia do trabalho braçal nas fazendas, a revolta com a
opressão sofrida e a saudade da África. Sempre no linguajar do homem
rural. Os escravos trouxeram com eles o ritmo africano para cultuarem, em
seus rituais, os seus ancestrais e deuses. Aqui aconteceu o que é chamado
pelo folcloristas de "funcionalidade do folclore", baseado no fato de que
o povo não conhece o ato gratuito, tudo o que faz tem um destino ou
preenche uma função. O fato folclórico se modifica de acordo com a
sociedade. Esses escravos se comunicavam através de mensagens secretas,
onde protestavam contra a escravidão, zombavam dos patrões publicamente,
combinavam festas de tambor e fuga. Segundo Ducrot (1977), quando fala
sobre "O implícito fundado na enunciação", o ato de usar a palavra não é,
"nem um ato livre, nem um ato gratuito". Não é livre porque algumas
condições devem ser satisfeitas para que se faça uso da fala; não é
gratuito, porque toda fala apresenta-se motivada, pois está sempre
respondendo a certas necessidades ou visando a certos fins. Os jongueiros
aprenderam a trocar o sentido das palavras, criando um novo vocabulário
para se comunicarem entre si e fugirem do castigo dos senhores que não
entendiam esta linguagem cifrada, enigmática e metafórica. Ex: quando
algum escravo via o senhor chegando, avisava aos outros através do
ponto.
Ei campo quimô Ei campo quimô Piquira tá
curiando Piquira tá curiando, é...
Nota: piquira é um
peixinho muito pequeno e os escravos eram os piquiras
em atividade.
E quando não o
avistavam com tempo de avisar aos companheiros cantavam:
O cumbi
virô, ei, ei, ei o cumbi virô ,ei, ei, ei cumbi, á, á, á, á,
á,
Nota: cumbi era o "sole". Simbolismo de autoridade, sol e
sinhô.
E ao terminarem
as atividades e chegada a hora de ir embora , cantavam:
"Vamo
simbora , vamo simbora A coroa do rei alumiô".
Nota: a
lua já havia aparecido. A lua era a coroa do rei, do sol. Era
noite.
Giraud (1975)
explica que "o valor semântico de uma palavra é o seu sentido" e também
afirma que "uma mutação semântica é uma mutação de sentido". Em muitos
casos o enunciado contido no ponto do jongueiro serve apenas para fazer a
mensagem passar, deixando-lhe a possibilidade de refugiar-se por trás do
sentido literal.
Água com areia Não pode combiná Água vai
imbora Areia fica no lugá
Nota: água é o fazendeiro novo,
inexperiente, sem prestígio político, que fracassa em seus negócios; areia
é o proprietário antigo, poderoso, forte, que domina o
município. Manobras estilísticas é o termo empregado por (Ducrot, 1977)
quando: "a manifestação do conteúdo implícito repousa numa espécie de
astúcia do locutor. Sabendo que o destinatário vai procurar as motivações
possíveis do ato de enunciação realizado, e que , se acreditar na
honestidade desse ato, vai interrogar-se sobre as conseqüências dos fatos
enunciados, o locutor procura trazer o destinatário para o seu próprio
jogo e dirigir à distância seus raciocínios". O jongueiro procura sempre
enredar os outros com jogos lingüísticos e manobras estilísticas, no
sentido de provocá-los com palavras para
testar sabedoria.
Vim no seu caminho Mas não vim furá
pilão Eu venho contá vaca Não venho contá bezerro
Nota:
"estou no seu caminho, mas sem má intenção, não vim brigar nem ofender,
vim para as coisas de maior importância e não quero saber de
ninharias".
Debaixo de papai velho Menino tá
sepurtado Quero contá do meu ponto Menino tá
sepurtado"
Resposta do outro jongueiro:
Meu irmão
sendo mais velho Licença peço procê Eu vô desinterrá menino Pra
nóis tudo aqui bebê.
Nota: "o chefe do jongo , companheiro do
cantador desde a infância, enciumado com a sabedoria, enterrou uma garrafa
de pinga debaixo do tambu". Ainda, segundo Ducrot (1977) as manobras
estilísticas permitem ao locutor fazer com que o destinatário entenda o
que se quer dizer sem ter dito, fugindo aos riscos que poderiam surgir com
a explicitação. O ouvinte fica sabendo mas, ao locutor fica garantido o
poder de negar. Os jongueiros utilizavam, largamente, estas manobras em
seus pontos, como se pode ver:
O pinto com o galo Dorme junto
no polero Se o galo facilitá O pinto canta primero.
Nota:
galo, jongueiro velho; pinto , jongueiro novo. Todos juntos na dança, mas
o galo deveria ter cuidado para que o mais novo não demonstrasse maior
sabedoria. Segundo Mangueneau (1996), o implícito desempenha um papel
primordial onde "dizer , nem sempre é dizer explicitamente"; o dito e o
não dito estão sempre entrelaçados no discurso onde "a pragmática concede
todo o peso às estratégias indiretas do enunciador e ao trabalho de
interpretação dos enunciados pelo co-enunciador. Muitas vezes o locutor
enuncia o explícito para fazer o implícito passar, invertendo a hierarquia
"normal" para chegar a seus fins". Isso pode ser visto nesses
pontos:
O mundo estava torto São Pedro endireitô Na sola
do seu sapato Corre água e nasce frô.
Nota: água, simboliza
pinga; havendo água, há flor; havendo pinga, há alegria.
Eu vim
de baixo Sinhá me falô Não catuca boi da guia Que eu também sô
guiadô.
Nota: boi da guia, é o principal, que dá direção aos
outros. Um jongueiro estava provocando o chefe , e um outro avisa que não
o melindrasse, que ele também era guiador, estava, portanto, ali, para
defendê-lo.
Dandeiô,
danda, bandeira de São Pedro, Letrero de São
João.
Nota: você diz que a coisa é uma, mas, a coisa é outra. O
implícito pode ser interpretado como um procedimento da fala que dá ao
locutor a oportunidade de dizer alguma coisa sem precisar aceitar a
responsabilidade de tê-la dito; ele pode beneficiar-se da "eficácia da
fala e da inocência do silêncio". Esta linguagem cifrada passou por
modificações a partir da abolição dos escravos. Os ex-escravos e seus
descendentes não receberam um pedaço de terra para continuar trabalhando
na agricultura, e então, foram migrando, principalmente, para a cidade do
Rio de Janeiro. A chegada desta população procedente do Vale do Paraíba,
do interior do estado, de Minas Gerais e do Espírito Santo, fez com que o
Rio de Janeiro se tornasse a região do Brasil com maior número de
jongueiros, quase todos radicados na região central da cidade. Com a
reurbanização do centro do Rio, na gestão de Pereira Passos, a população
pobre foi expulsa dali. Essa população, de maioria negra, teve que subir
para o alto dos morros, até então desabitado, inaugurando uma nova forma
de moradia: - as favelas, onde o jongo continuou a ser praticado, gerando
duas manifestações distintas. Uma foi a macumba, saída da linha mística,
onde os jongueiros invocavam os antepassados. Outra é o samba, que veio da
parte profana, voltada para o divertimento e a brincadeira. Até hoje,
alguns núcleos familiares de afro-descendentes persistem em manter viva a
tradição do jongo. No morro da Serrinha em Madureira, existe um grupo
chamado "Jongo da Serrinha" liderado por Maria de Lourdes Mendes, "Tia
Maria do Jongo", hoje com 83 anos. Suas atividades vêm ampliando o
potencial artístico do ritmo, atraindo a atenção do Brasil e do exterior
para esse patrimônio cultural.
Bibliografia GIRAUD, Pierre. A Semântica. São Paulo:
Difel, 1975. DUCROT, Oswald. Princípio de Semântica Lingüística. São
Paulo: Cultrix, 1977. MANGUENEAU, Dominique. Pragmática para o Discurso
Literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996. RIBEIRO, Maria de Lourdes
Borges. O Jongo. Rio de Janeiro: Funart, 1984. CASCUDO, Luís da
Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Melhoramentos,
1980.
http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno13-04.html |