FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA

 

 


Membros da artilharia da FEB na Itália, 1944/1945
Arquivo Diana Oliveira Maciel

 

Adestramento no Teatro de Operações

 

 

Não foram poucas as dificuldades que, de começo, teve que vencer a primeira tropa brasileira (1º Escalão de Embarque) desembarcada na Itália. Os chefes americanos, de menor graduação, estranhavam, a princípio, a presença de nossos soldados em território italiano e não escondiam a dúvida sobre as vantagens do emprego da tropa brasileira na luta, pois, do Brasil, apenas tinham notícia das bases aéreas de Belém e Natal, que, aliás, de brasileiras só possuíam o chão. Muito pouco se avançou no adestramento militar do 1º Escalão de Embarque durante o seu primeiro mês de permanência no Teatro de Operações na Itália. O obstáculo principal a esse desenvolvimento foi, como no Brasil, a falta de material de instrução. A ansiedade geral da tropa brasileira de entrar em ação de combate induziu o General Mascarenhas de Moraes, desde os primeiros dias de nossa estada em Bagnoli, perto de Nápoles, a interessar-se vivamente pelo recebimento do material de guerra e pela transferência do 1º Escalão de Embarque para uma área de treinamento, o que tornaria possível a melhoria do nosso padrão de adestramento. Como decorrência das repetidas entrevistas que manteve com as autoridades militares americanas, objetivando a concretização daqueles propósitos, o nosso chefe divisionário conseguiu, no dia 26 de julho de 1944, a autorização deslocar o 1º Escalão de Embarque para a região de Tarquinia. Ainda mais, em Tarquinia o contingente deveria receber armamento e equipamento de toda a natureza. Na noite de 5 de agosto de 1944 estava o 1º Escalão de Embarque concentrado em Tarquinia, onde, dentro de uma quinzena, recebia grande cópia de variado e complexo material de guerra. Naquela mesma data ficou a nossa tropa subordinada ao V Exército Americano, Grande Unidade que vinha tendo brilhante atuação militar, desde a Campanha da África. De 18 a 20 de agosto o 1º Escalão de Embarque deslocou-se de Tarquinia para Vada, que distava, nessa ocasião, 25 quilômetros da frente de batalha do Arno. Instalara-se o 1º Escalão de Embarque no Acampamento de Vada, com o objetivo de ultimar o seu adestramento para o combate. Disfarçava-se sob esplêndido parreiral o nosso acampamento.Mas, os cuidados que devíamos manter, dadas as vizinhanças da zona de combate, não eram poucos. O funcionamento de nossos Serviços, com a nova situação que exigia disciplina de luzes e de circulação, veio a ser encarado com espírito mais objetivo. As nossas necessidades passaram a ser satisfatoriamente atendidas, principalmente pela adoção do sistema das visitas diárias dos oficiais de ligação e chefes de serviço americanos. A permanência dos brasileiros na área de Vada desde os primeiros dias, caracterizou-se por uma intensificação de nosso adestramento. Assim, iniciamos a 2 de agosto o "período de instrução final", com a duração de três semanas. A instrução, já com a dotação completa de material progrediu brilhantemente. Os últimos dias do "período de instrução final" foram vividos dentro do grande exercício de 36 horas, e iniciado a 10 de setembro, o qual constituiu a recordação emocionante do acampamento de Vada. Tal exercício contou com a desvelada assistência do comandante do V Exército, general Mark Clark. Esse "exercício-teste", no qual tomaram parte mais de quatro mil expedicionários, constituiu quase um verdadeiro combate. Quando concluído, ouviram-se os árbitros. Manifestaram eles o parecer de que os magníficos resultados, evidenciados nesse exercício, atestavam excelente grau de adestramento para o combate. "In continenti" o general Mark Clark felicitou o general Zenóbio da Costa e declarou o 1º Escalão de Embarque apto para entrar em linha. Essa tropa, em conseqüência, iria atuar na frente geral de Pisa, integrando as forças do brilhante e operoso general Crittenberger, comandante do IV Corpo de Exército. Indescritível a exultação patriótica que então empolgou o acampamento de Vada. Estava o Destacamento FEB atuando no vale do Serchio, quando o grosso da Divisão Brasileira (2º e 3º Escalões de Embarque), avaliado em 10.000 homens, alcançava a Área de Treinamento situada na Quinta Real de San Rossore. Aí, nessa bela quinta real, onde os pinheiros, álamos e ciprestes, plantados na planura interminável, configuravam o traçado de numerosas alamedas, os elementos componentes dos 2º e 3º Escalões de Embarque, em data de 11 de outubro de 1944, encontraram um acampamento militar dotado de todos os recursos higiênicos e dispostos em ordem impecável. Logo depois de estacionados, os 2º e 3º Escalões deveriam receber o material necessário a um treinamento tático intensivo. O equipamento militar do grosso da Divisão não se processou no quadro das previsões de tempo do comandante do V Exército. Os 2º e 3º Escalões de Embarque levaram trinta e cinco dias para receber todo o suprimento bélico e os trabalhos de distribuição aos Órgãos de Serviço brasileiros, a cargo da PBS, só foram dados por concluídos no dia 22 de novembro. Em meio a essa balbúrdia e esse ambiente de atropelo, a instrução se desenvolveu com imperfeições, cujas repercussões se fizeram sentir nos embates iniciais de algumas unidades do grosso da 1ª DIE. Além das providências de ordem material para um bom rendimento da instrução, particularmente tática, o General Mascarenhas de Moraes considerou necessário e oportuno o restabelecimento dos laços orgânicos da Divisão, uma vez que havia já chegado ao teatro de guerra o restante de seu efetivo. Para isso o chefe brasileiro assumiu a direção das operações da frente de combate a 1º de novembro de 1944, designando, ao mesmo tempo, os Generais Zenóbio e Cordeiro de Faria para organizarem e reverem os "testes" de instrução da infantaria e da artilharia, respectivamente, o que veio a realizar-se na ampla área de treinamento de Filettole para a tropa recém-chegada. Por motivos fora da alçada do General Clark e dos chefes militares brasileiros, foram as unidades dos 2º e 3º Escalões de Embarque muito prejudicadas na sua instrução, depois da chegada ao teatro da guerra. Os 4º e 5º Escalões de Embarque, que constituíam o Depósito de Pessoal da FEB, partiram do Brasil, praticamente sem instrução, chegando à Itália, respectivamente, a 7 de dezembro de 1944 e a 22 de fevereiro de 1945, um dia depois da vitória de Monte Castelo. Transformado, sem tardança, em um magnífico Centro de Instrução e Recompletamento, graças à visão e desvelo do General Truscott, então comandante do V Exército Americano, incumbiu-se o Depósito de Pessoal, dedicadamente, do adestramento dos homens em cada arma e em cada especialidade. Estacionado no interior de um belo e extenso pinheiral nas proximidades do povoado de Staffoli, o Depósito de Pessoal da FEB chamava a atenção pela ordem e higiene de suas instalações, pela grandiosidade de seus numerosos stands de tiro e aspecto magnífico das pistas especiais de infiltração. Foi preocupação constante dos chefes americanos e do chefe brasileiro a instrução dos oficiais, quer na parte tática quer nas diversas especialidades, pois para esse fim estava o Teatro de Operações da Itália muito bem aparelhado com as suas escolas e centros de instrução. No decorrer do inverno de 1944/1945, o comando brasileiro intensificou o treinamento de oficiais, fazendo realizar um ativo plano de instrução. No período de estabilização que precedeu as operações de fevereiro de 1945, cuidamos de apurar a capacidade ofensiva dos comandas em todos os escalões. No QG Avançado de Porretta Terme, neste entrementes, realizou-se, com o propósito de aprimorar a nossa técnica ofensiva, um esmerado e vantajoso curso de conferências, proferidas por oficiais americanos e brasileiros. Este curso, tratando somente de assuntos vinculados ao combate ofensivo, mereceu a honra de contar com a colaboração, como conferencistas, dos Generais Truscott e Crittenberger, comandantes do V Exército e IV Corpo, respectivamente. Ressalta nítida e dolorosa, em face do exposto nas páginas precedentes, a conclusão de que a 1ª DIE não fora bafejada pela sorte, no que concerne ao seu adestramento militar, nos campos de instrução da Itália e Brasil. Se em nossa Pátria as dificuldades de organização, a seleção física, a escassez de material e fatores outros impediram que alcançássemos os objetivos finais da instrução, na Itália o retardamento da entrega do material e as necessidades prementes da frente de combate forçaram a nossa DI a entrar em linha num estado de adestramento reconhecidamente incompleto. Tornaram-na tais circunstâncias a única Divisão que não foi submetida ao inalterável ciclo de instrução das Grandes Unidades norte-americanas. Completamos a nossa instrução em estreito contacto com o inimigo, senhor de vantagens topo-táticas indiscutíveis. Amargamos, nessa aprendizagem, alguns reveses decerto inevitáveis. Enfrentamos, como remate ao nosso adestramento, um inverno bem rude nas gélidas escarpas dos Apeninos. Nessa conjuntura, a que fomos levados pela força das acontecimentos, forjou-se a capacidade combativa da tropa brasileira e aprimorou-se o sentimento de responsabilidade dos chefes em todos os escalões da hierarquia. Nos erros cometidos e nos reveses sofridos, fomos buscar os ensinamentos que nos levaram a tão sensacionais e espetaculares vitórias.

Marechal Mascarenhas de Moraes
"A FEB pelo seu Comandante"

 


Artilharia da FEB na Itália, em treinamento - 1944/1945
Arquivo Diana Oliveira Maciel

A capacidade de tiros das antiquadas metralhadoras que se iria usar, em relação às metralhadoras alemãs, era irrisório, insignificante mesmo. Enquanto aquelas, quando bem acionadas, disparavam, no máximo, quatrocentos e cinqüenta tiros por minuto, já as alemãs, em igual tempo, disparavam mil e oitocentos tiros! Uma tremenda desproporção. O som que produziam as metralhadoras inimigas era o seco e ríspido rasgar de um pano grosso e novo, em alta vibração. Para aquela época, aquilo era assombroso. Outra deficiência gravíssima: todas as armas aliadas, quando atiravam à noite, emitiam clarão ou luz denunciando o local de onde atiravam. Especialmente a metralhadora pesada, ponto 50. Esta, então, desprendia uma língua flamífera de mais de dois metros, constituindo-se, dessa forma, em alvo fácil das armas adversárias. Tal falha dificultava o seu emprego tático à noite. Dela só se fazia uso, nessas horas, em circunstâncias especiais, quando imprescindível, nos casos de ataque ou contra-ataque inimigos. Já, em contrapartida, o armamento alemão, sobretudo as metralhadoras, disparavam, através das noites, freqüentes e rapidíssimas rajadas, numa insólita provocação aos soldados brasileiros, sem emitir luz ou clarão nenhum. Atiravam à vontade e tranquilamente. Chegavam à ousadia de saírem de seus abrigos, vindo até próximo às linhas brasileiras, atirando, provocando. Provocavam ao máximo. Tudo procuravam fazer para que os brasileiros respondessem aos seus tiros, pois na luz da resposta estaria a indicação do local da arma. Daí, algumas granadas de seus morteiros, lançadas com precisão, se encarregariam de silenciar a arma que, contra eles havia atirado. Só se poderia atirar quando o adversário estivesse bem próximo e visível -"na cara" -, como se dizia. Os efeitos psicológicos dessa penosa situação de passividade em que se era obrigado a permanecer, noites e noites seguidas, ouvindo apenas e apenas amargando as provocações do inimigo, com suas rajadas gargalhantes, foram das mais graves conseqüências, terrivelmente danosos, levando em alguns casos, aos extremos do desespero e da loucura. Estes efeitos causaram mais danos aos nervos dos combatentes do que os de suportar horas e dias sob tremendos bombardeios. Nos últimos anos da guerra, para fazer frente ao poder de fogo da infantaria alemã, os exércitos aliados aperfeiçoaram suas armas individuais. Assim foi com os fuzis SMLE nº 4 MK1, dos ingleses, e o Garand dos americanos, bem como as submetralhadoras Thompson e Sten Gun, usadas, não apenas na invasão da Normandia, como também na Itália; os russos desenvolveram a fabricação do excelente fuzil Tokarev, semi-automático, e da notável submetralhadora PPSh, que disparava 650 tiros por minuto. Apenas a sofrida divisão brasileira permaneceu, até os últimos dias da campanha, com as ordinárias e antiquadas armas que lhe foram fornecidas. Se as armas recebidas apresentavam tantos e tais defeitos, mais deficientes, fracos e falhos foram os pouquíssimos exercícios realizados. Os escassos quinze dias de "período de instrução", estabelecidos no documento do comando da divisão denominado de Diretiva Geral nº 7, contados após ao recebimento das armas, transcorreram sem nenhum aproveitamento instrutivo, porque não houve instrução nenhuma. Não havia monitores ou instrutores capazes. Estes, no entender da orientação superior, deveriam ser os oficiais e os sargentos das companhias, os quais, igualmente, ignoravam as armas e não possuíam nenhum conhecimento e experiência da guerra. Uma calamidade. Poucos e raros foram os comandantes de companhia, como no caso do capitão Silvio Scheleder, da 2ª Companhia, que se deram ao trabalho de procurar aprender - aprendendo primeiro - para depois transmitir aos soldados os seus conhecimentos no manejo e tiro das armas que até então todos desconheciam. Diariamente via-se o capitão Scheleder conduzir os seus soldados para uma praia deserta, na costa do Mar de Tirreno, não muito distante da Quinta Real, e ai todos praticavam exercícios de tiro, independentemente do tipo ou modelo da arma individual que lhes tivesse sido distribuída. Todos atiravam com todas as armas, da bazuca à pistola. Procurava fazer com que aprendessem o funcionamento e o manejo das armas que dispunha a companhia. Era sem dúvida um comandante extraordinário, afeito e dedicado à função de comando. Acompanhava atento, todos os exercícios, ao lado dos soldados. Para maior facilidade e rapidez no aprendizado, subdividia a companhia em grupos sob a responsabilidade dos demais oficiais e dos sargentos, mas não se descuidava um momento sequer; sempre orientando, animando, fiscalizando. Scheleder foi uma exceção; poucos se deram ao trabalho. Assim mesmo, esses rápidos exercícios não foram além dos da prática de tiros e manejo das armas.

"Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira"
Leonércio Soares

 
Artilharia da FEB na Itália, em treinamento - 1944/1945
Foto escaneada do livro "Cinqüenta Anos Depois da Volta"
Octávio Costa

Quebra Canela - Primeiras Palavras

A tarde estava chuvosa e convidava à melancolia e à reflexão. Ao meu lado os passageiros cochilavam como podiam - minha esposa e companheira de mais de trinta anos felizes e dois netos - enquanto descíamos, de automóvel, a Serra do Mar, com destino à cidade balneária de São Sebastião. Lá nos esperava nossa casa, plantada à beira mar, face à Ilhabela, onde passaríamos o fim-de-semana. No meio daquele nevoeiro e com o silêncio reinante, passaram a desfilar, na minha memória, farrapos de fatos e vultos de pessoas; em cada curva do caminho parecia que os fantasmas do passado me fitavam, com um propósito não revelado. De repente, fui assaltado pela lembrança do front italiano, em pleno inverno, com aquela mesma falta de visibilidade, retratando a algidez de suas montanhas geladas, por onde desfilavam os vultos sombrios dos pracinhas enregelados, sempre subindo a montanha, ignorando o que poderia acontecer na próxima volta do caminho: uma rajada de metralhadora, cair num campo minado ou ficar bloqueado numa cratera da estrada... Para minha surpresa, as imagens eram tão nítidas que me achei capaz de rememorar os fatos que passavam, com incrível rapidez, pela minha memória. Achei imperioso que alguém gravasse aqueles acontecimentos inéditos, que fatalmente cairiam em total esquecimento, à proporção que fossem desaparecendo seus protagonistas. Ocorreu-me que, na falta de outro intérprete, caber-me-ia a tarefa, até por obrigação, de narrar a história da Companhia que comandara na II Guerra Mundial. Naquele momento resolvi, pelo menos, tentar ser o narrador dos feitos memoráveis daqueles 180 homens, simples, despretensiosos e anônimos que constituíram a 2ª Cia do 9º Batalhão de Engenharia. Recordei que fui conhecê-la nos idos de 1943, aquartelada em Aquidauana, uma pacata cidade do interior do Estado de Mato Grosso, sem poder vislumbrar, sequer, que iria acompanhá-la por toda uma guerra mundial e trazê-la de volta à terra natal, após acontecimentos extraordinários. Deliberei, então, dentro de minhas limitações, narrar a verdade dos fatos tão fielmente quanto me fosse possível, no propósito de não falsear os episódios, bons ou maus, nos quais, por simples capricho do destino, me vi envolvido e que tive de enfrentar com meus leais comandados. Sendo minha intenção, tão somente, estabelecer uma narrativa fiel, não terei dúvidas em reconsiderar com humildade os enganos que involuntariamente vier a cometer. Chegando ao litoral, após descer a Serra, minha decisão já estava tomada: apesar de todas as dificuldades que encontraria, inclusive a falta de pendores literários que lhe emprestasse o merecido brilho, iria fazer o relato dos fatos vividos pela 2ª Cia no quadro de atuação do 9º BE, antes e durante a Campanha da Itália. Assim fazendo, estarei prestando a minha homenagem ao valoroso pracinha brasileiro, especificamente ao soldado de Engenharia. Após decorridos tantos anos, quero ser fiel a mim mesmo, aos meus superiores hierárquicos e aos meus subordinados diretos, com quem passamos terríveis sofrimentos e raras alegrias, enfrentando as situações mais imprevistas. Dentro de minhas possibilidades, quero fazer justiça ao valoroso soldado de Engenharia, tão pouco lembrado nos livros escritos sobre a história da FEB. Algo de extraordinário acontecera no meu íntimo: sempre evitei recordar episódios de guerra, raramente comentando as passagens por mim vividas, exceto quando do encontro fortuito com antigos companheiros de campanha. E agora, por livre e espontânea vontade, mexeria na ferida já cicatrizada, revolvendo as cinzas de casos já sepultados, fazendo surgir não só os memoráveis, como alguns desagradáveis à lembrança e ainda mais à narração. Não devo revelar mágoas nem ressentimentos, pela incompreensão de muitos que não se aperceberam das enormes dificuldades a serem vencidas por uma arma combatente altamente especializada, que encontrou pela frente dois ferrenhos inimigos a vencer: o tático e o técnico, ambos com larga experiência de guerra. Pois não foram aqueles mesmos combatentes treinados no deserto da África ou nas estepes da Rússia que tivemos de enfrentar, de igual para igual, em fim de campanha? Foi contra eles que tivemos de improvisar, superando deficiências de um treinamento precário e descontínuo. Por força da critica situação criada na frente italiana, com a transferência de parte de suas tropas para o desembarque efetuado no sul da França, prematuramente fomos lançados no front. Por isto, não houve tempo para nossa instrução final de guerra, precedida de habitual adaptação e verificação. Foi contra eles também, que tivemos de conquistar posições no alto das montanhas, aonde tinham estabelecido as organizações defensivas da famosa Linha Gótica. Lá enfrentamos, também, um inverno até então só vislumbrado em artísticos cartões postais; pois a neve macia, conhecida por nossa gente, era o algodão de enfeite das árvores de Natal. No entanto, transcorridos poucos meses de campanha, os veteranos soldados nazistas e fascistas eram surpreendidos, na Ofensiva da Primavera, por uma tropa terrivelmente agressiva, apoiada por uma Engenharia que não lhes dava tréguas, sempre nos seus calcanhares, por sobre as destruições e nos campos minados com que tentavam, sem êxito, retardar o avanço das forças brasileiras. Então, aquela Engenharia bisonha, de meses atrás, revelou-se em toda sua versatilidade, fazendo escoar, o mais rápido possível, as colunas de carros de combate e viaturas de todos os tipos que se enfileiravam ao longo da estrada, à espera de que os obstáculos fossem removidos ou ultrapassados, para cerrarem sobre o inimigo em retirada, cercando-o e destruindo-o. Jamais podemos esquecer aqueles heróis anônimos, retirando minas e armadilhas semeadas pelo inimigo, trabalhando sem esmorecimento, da madrugada ao anoitecer, sempre bem-humorados, resistentes ao sofrimento, atolados na lama ou cobertos de poeira, conscientes que de sua eficiência dependia o sucesso final, pois sem estradas abertas e desimpedidas, os exércitos modernos não ganham as batalhas. Limitar-me-ei à narrativa dos sucessos e insucessos da 2ª Cia, que tive a honra de comandar durante toda a campanha e cujos feitos mais assinalados acompanhei, por dever de ofício. Nesta oportunidade, presto minha homenagem às nossas coirmãs - as 1ª e 3ª Cias do 9º BE, que sempre nos serviram de exemplo, cabendo à primeira o privilégio de ter pertencido ao 1º escalão da FEB, além de ter sido a primeira tropa brasileira a entrar em ação no front italiano, enquadrada na Engenharia do IV Corpo de Exército americano. Quanto à 3ª Cia, teve o mesmo tempo operacional que o nosso, logrando se distinguir por sua eficiência e audácia. Concitamos - e mais ainda - convocamos seus integrantes, especialmente seus oficiais, a escreverem seus feitos, com o que estará escrita a história completa do 9º BE, tal como foi vivida pelos seus integrantes. Não podemos esquecer, também, a Cia de Comando e Serviços, indispensável à vida do Batalhão e da Divisão. Terei, portanto, de reviver o papel de um jovem Capitão que desembarcou dos pequenos transportes de tropa, no porto de Livorno - totalmente destruído pelos alemães - encontrando pela frente um mundo de incertezas, com a responsabilidade de dar o bom exemplo e bem conduzir sua Companhia, no maior conflito de todos os tempos. Aquela tropa bisonha e despreparada, porém possuindo virtudes e qualidades, tal como os demais componentes da FEB, em pouco tempo já ombreava com os melhores e mais aguerridos soldados dos exércitos aliados. Tentarei fazer uma narrativa acessível tanto a civis quanto a militares, aproveitando a oportunidade para fazer algumas observações ou tirar ensinamentos dos acertos e dos desacertos, não só para meditação dos contemporâneos, como para aprendizagem dos jovens. Não pretendo estabelecer polêmica em torno de fatos, alguns de interpretação doutrinária daquele tempo, que porventura tenham causado algum dissabor entre combatentes amigos - o que é comum em todas as guerras - mas, também, não deixarei de apresentar nossa crítica quando for necessária. Também não pretendo salientar ou tirar ilações sobre personagens que, mais tarde, vieram a representar papéis relevantes em nosso país. Tentarei deixar, com simplicidade e autenticidade, um testemunho válido de episódios vividos de nossa História Militar. Deus fora extremamente generoso ao me permitir atravessar incólume aquela fase difícil de horrores e de dificuldades, permitindo-me, agora, rememorar aqueles tempos com a consciência tranqüila do dever cumprido, assim como tantos outros milhares de combatentes brasileiros também podem se ufanar. E a prova de Sua magnanimidade estava em permitir ter a meu lado, naquele instante, repousando em segurança, a preciosa presença de uma parte de minha família, símbolo de minha felicidade, enquanto minha mente fervilhava de memórias e recordações. Permita-me Ele, agora, levar a bom termo a nova tarefa a que me impus, repleta de dificuldades pelo tempo decorrido e pelos sentimentos que envolve, realizando um trabalho que seja útil, fiel e humano, em honra do soldado combatente de nossa Engenharia da FEB.

"Quebra Canela"
Raul Cruz de Lima Júnior


Artilharia da FEB na Itália, em treinamento - 1944/1945
Foto escaneada do livro "Eu Estava Lá!"
Elza Cansanção Medeiros

 

"Mamãe eu tenho pensado muito sobre nossa situação, sei que é dolorosa para você, e a você, às vezes, deve parecer incrível que tenha tido tanto cuidado e desvelo em criar um filho, depositando nele todas as suas esperanças, e um dia vê esse filho arrebatado inesperadamente para ir guerrear em terras estranhas. As mães quase nunca compreendem essas coisas... É difícil, eu sei como você se sente e pensará: com que direito pode o Estado arrebatar meu filho? É uma pergunta fácil de responder, mamãe. Você não me criou exclusivamente para você, mas sim para tornar-me um homem útil à sociedade e sobretudo à nossa pátria. (...) Aqui não pode haver distinção de classes, nem de berço. Se, por um acaso do destino, nasci numa situação privilegiada, aqui não valho por isso, e sim, pela produção de meu esforço. Sou igual a qualquer outro que nunca teve ao seu alcance certas coisas e que veio também lutar comigo pelo mesmo ideal, pela mesma causa. Todas essas coisas fazem-me ver que o que fiz não representa muito. Vim somente com a obrigação que todo homem tem na vida de defender a dignidade, a liberdade e a honra da terra em que nasceu. (...) As mães é que são as heroínas dessa conflagração. São elas que suportam com toda a dor a separação dos filhos! Os papéis agora se invertem: sou eu, agora, que tenho admiração e orgulho de você, pelo sacrifício que está fazendo, sofrendo com uma resignação que me consola e deixa-me orgulhoso."

Joaquim Xavier da Silveira
"Cruzes Brancas - Diário de um Pracinha"


Artilharia da FEB na Itália, em treinamento - 1944/1945
Arquivo Diana Oliveira Maciel

Já estamos a 18 de setembro e os feridos apresentam-se em número cada vez maior. Felizmente nenhum brasileiro, embora nossa tropa já entrasse em contato com o inimigo. Contratamos um italiano para limpar nossas barracas; não é necessário dizer que é antifascista, como aliás todos que estão habitando a parte liberada da Itália. Continuamos a operar os feridos norte-americanos que vão chegando em levas. Já se vai tornando digno de nota o fato de sempre nos tocarem para atender os negros, já não se trata mais de coincidência. Aí está mais um dado da discriminação racial que domina a nação nórdica. Certamente não tendo sido comprovada, perante os responsáveis pela assistência hospitalar, a nossa capacidade técnica, procuravam eles testar-nos oferecendo, como se fosse uma experimentação, os seus patrícios de cor. A nós, no entanto, isso não causou espécie; não estamos vinculados aos preconceitos étnicos dominantes na terra do tio Sam. Vamo-nos fazendo de desentendidos e vamos assistindo os nossos aliados negros com a mesma dedicação que dispensaríamos aos mais despigmentados dos nossos amigos. A tensão racial no seio da população norte-americana, como se vê, manifesta-se em todas as atividades sociais; até mesmo no campo de luta, onde todos se deveriam nivelar na busca do ideal comum. Chegaram hoje mais quatro colegas nossos, todos jovens tenentes; foram distribuídos pelas equipes, que, assim, se elevam a três, todas a postos, na expectativa de dias piores. A 22 de setembro de 1944, que seria o início da nossa primavera, mas que aqui é outono, surgiu o primeiro autêntico ferido de guerra brasileiro. É natural de Santa Catarina e foi atingido, em combate, por estilhaço de granada morteiro. Tinha na região deltoidiana (ombro) direita grave ferimento; também fora atingido em ambas as pernas. Desse dia em diante, durante uma semana, temos estado muito atarefados. Os feridos multiplicam-se, também é maior a gravidade. Operamos um caso de ferimento transfixiante do tórax com séria lesão pulmonar e hemorragia incontrolável pelos métodos vigentes. Outro ferido, um oficial, fora atingido nos membros inferiores, no abdome e na cabeça, ao mesmo tempo. Para socorrê-lo houve necessidade de entrar em ação três equipes cirúrgicas. Graças ao uso continuado de sangue e a aplicação de penicilina, resistiu a tudo. O ferimento da cabeça foi o mais grave. O estilhaço entrara-lhe cérebro adentro, destruindo-o em grande proporção. Durante 4 horas foi operado a fim de retirar a parte mortificada do tecido nervoso, o estilhaço retido e permitir a cicatrização da ferida. Trabalho minucioso, muito delicado e estafante. Tudo isso sob o calor que atravessa as lonas das barracas, de modo a tornar um forno o seu interior. A 27 de setembro as coisas melhoraram, os feridos escassearam, felizmente. Aproveitamos a oportunidade para, atendendo o convite de um desses valorosos e abnegados médicos do batalhão, ir visitar a linha de frente. De caminhão alcançamos a povoação de Capile, nas proximidades de Viareggio. A pé fomos percorrer os postos avançados de Primeiros Socorros ("first aid"), em plena zona de combate, portanto.

"Notas de um Expedicionário Médico"
Alípio Corrêa Netto



Artilharia em Treinamento
Imagem do site
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Filetole conseguira permanecer esquecido. Nos declives ou meia-encosta dos montes se estendiam os tabuleiros, acompanhando as curvas de nível, aplainados, formando uma seqüência de grandes degraus sobrepostos uns sobre os outros, partindo da base da elevação. Ao longo desses tabuleiros é que os lavradores faziam o cultivo de suas plantações, especialmente aquelas de condição mais permanente, como as de uva. E, foi, exatamente, aí nos tabuleiros que as unidades de infantaria encontraram terreno apropriado para acampar. O vale era muito úmido; não oferecia condições. As pequenas barracas de lona, com capacidade para dois homens em cada uma, formavam compridas fileiras que seguiam os contornos ou a curvatura horizontal do terreno e também sobrepostas umas fileiras sobre as outras. Os morros, vistos à distância, recobertos de barraquinhas enfileiradas e estufadas ao vento, assumiam uma aparência alegre e festiva. Uma manhã, quando o capitão Scheleder reuniu a companhia para uma das saídas pelos morros à guisa de instrução, começou a chover. Eram as chuvas de outono que chegavam. Chuvas finas e frias, atiradas de chofre por lufadas de vento, impertinentes e castigantes. O outono, na Europa, quando rigoroso, é tão duro de ser suportado quanto ao próprio inverno, sobretudo para as pessoas originárias de clima tropical. Era mais um dos terríveis adversários a se manifestar contra o soldado brasileiro desprotegido e despreparado. Na intenção de se agasalharem, os soldados correram apressados, retirando de suas mochilas as "capas de chuva" que lhes havia sido fornecida no Brasil. Essa ordinarissima peça do uniforme da Força Expedicionária Brasileira fora confeccionada em brim de má qualidade, fino e sem nenhum requisito de impermeabilização. Um pedaço de pano, um trapo inútil ao qual os cofres da Nação pagaram preços escorchantes aos fabricantes desonestos e aos militares corruptos encarregados das compras do Exército. Má confecção, má qualidade do tecido, tudo ruim, péssimo e ordinário como todas as coisas adquiridas especialmente para a tropa expedicionária. Houve uma reuniformização completa e especial para as unidades que faziam parte da expedição, sem que nada fosse aproveitado do que anteriormente era usado pelo Exército. E foi nessa reuniformização da FEB, na aquisição de tudo novo que, forçosamente, deveria ser superior e de acordo com as condições climáticas da região onde a tropa iria operar, é que o descalabro, sem limite, estarrecedor, aconteceu. Fortunas imensas foram feitas de um dia para outro, através do roubo e do crime ocorridos no fornecimento desses materiais sórdidos. Os gatunos. dos altos escalões, devem ter concluído: "Se comprarmos bons artigos, o que irá sobrar para nós?! ..." Ressalte-se que, nessa história, não pode haver inocente: quem não roubou foi omisso. Naquela manhã, em Filetole, quando a companhia alcançou o topo do morro onde iriam ser realizados os exercícios de lançamento de granadas de mão, o capitão Scheleder, todo encharcado, retirou a sua capa de chuva, colocando-a suspensa numa vara, na área de lançamentos: "Vai fazer o que estou supondo? inquiriu o jovem tenente Ari, que também já havia colocado a sua capa em outra vara. "Sim. Vou dar o destino que esta capa merece: servir de alvo", respondeu Scheleder. Alguns momentos depois, todas as capas dos soldados da 2ª Companhia, estavam reduzidas a frangalhos, estraçalhadas em tiras, balançando e pendendo, na ponta de varas, no alto de um dos morros de Filetole. Foi aquele, provavelmente, o mais proveitoso exercício de lançamento de granadas de mão, feito sob a chuva fria de outono e ao calor da vergonha e da indignação. Se as armas, recebidas dos americanos, eram antiquadas e deficientes; se os exercícios que deveriam ser feitos, não o foram; se as peças de uniformes, levadas do Brasil, eram ordinárias e imprestáveis; e, se a alimentação, mandada do Brasil, também não prestou, já a alimentação, fornecida pelos americanos, foi excelente. Pelo menos isto o soldado brasileiro recebeu de bom. Se assim não fosse, não teria agüentado a campanha da Itália. Cada companhia tinha a sua própria cozinha. 0 preparo dos alimentos era feito por cozinheiros brasileiros, mas orientados e instruídos pelos americanos, igualmente americanos eram todos os ingredientes e utensílios. Onde pudesse chegar um jipe, onde pudesse chegar um muar dos soldados alpinistas italianos, mesmo nos abrigos mais isolados e distantes nas encostas das montanhas do front, lá chegava, à fraca luz das madrugadas, nos marmitões térmicos, a comida farta, quente, higiênica, saudável e saborosa. Nunca o soldado brasileiro comera tão bem. Até suculentos pedaços de peru, de frango e de leitão assado, apareciam. E nunca faltava o pão fresco caseiro, a manteiga, o bacon, as geléias, as saladas de frutas, mel, chocolate e um mundo de coisas ricas em calorias e boas. Até o café, que poderia ser aproveitado e do qual o Brasil era um dos maiores produtores, não serviu. Mandaram para a tropa, na Itália, café em grão; as cozinhas de campanha não tinham condições de torrar e moer. O descaso e a irresponsabilidade, em se tratando da FEB, excederam todos os limites.

"Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira"
Leonércio Soares

Um Herói nunca morre!

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