FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA |
Monte Castello - o Grande Desafio
Arquivo Gen. Tácito
Theóphilo Gaspar de Oliveira
Não silenciaram
as baterias no Natal "Histórias de Pracinha" - Joel da Silveira |
Cartão de Boas Festas - dezembro de 1944
Arquivo Gen.
Tácito Theóphilo Gaspar de Oliveira
"O dia 24,
véspera de Natal, data das mais evocativas para nós brasileiros, cristãos
e católicos romanos na sua quase totalidade, foi um domingo. As sentidas
recordações do ambiente familiar - dirigidas para os mais diversos
povoados da Pátria distante, com suas características próprias de
comemorações - estavam expressas marcantemente nas fisionomias de todos
nós. As cartas recebidas e o deslumbramento que nos causava a queda da
neve, que ia cobrindo tudo de uma brancura enternecedora, não sei se
aliviavam ou ainda mais aprofundavam nossas tristezas. Dia 25, data máxima
da Cristandade, estávamos melancólicos e deprimidos. De qualquer maneira,
talvez ainda conduzidos por um sentimento humanitário, não houve, por
parte dos beligerantes, bombardeios naquele dia, pelo menos quanto a
Porretta e outros setores da nossa Divisão. Os americanos, no respeito às
peculiares tradições do seu povo, ofereceram peru e vinho aos seus milhões
de combatentes espalhados por todo o mundo, em comemoração da data, e nós,
como forças aliadas, estávamos incorporados ao seu grande e
eficientíssimo Exército. (...) Ao contrário do que ocorreu no Natal,
o início do ano foi festejado com um vigoroso bombardeio dos Tedescos.
Pareciam querer advertir que ainda estavam fortes para a continuação da
luta no novo ano." |
Foto retirada de
imagem paralisada de filme do You Tube sobre a FEB em ação
Não vá além daquele poste! Sinto alguma coisa estremecer dentro quando o Capitão Ernani Ayrosa da Silva (poucos dias depois ele seria gravemente ferido) me segura pelo braço e me diz: Cuidado. Não vá além daquele poste. O terreno está todo minado. Volto mais uma vez ao posto mais avançado da FEB. No termômetro manual do Capitão Ayrosa vem indicado que aqui fora já está fazendo nove graus abaixo de zero, o que significa dizer que a noite vai ser polar. A cortina de fumaça nos protege, grossa e acre, e por causa dela é impossível divisar qualquer coisa um metro além. A linha inimiga a nossa frente, onde os alemães estão vigilantes em seus postos igualmente avançados e protegidos em suas trincheiras e casamatas, é apenas uma parede cinzenta. Sentimos que eles estão ali, mas não os vemos, e muito menos suas trincheiras. Quando deixamos de falar - ou de sussurrar, porque qualquer som na acústica destas montanhas soa como um toque de cometa - o silêncio volta pesado e vazio. Um silêncio que esconde ameaças e armadilhas. O Capitão Ayrosa me diz: Estamos a menos de meio quilometro dos alemães. Durante alguns instantes ficamos ali parados, as botas enterradas na neve. Lá na frente, o poste inclinado, no qual o bombardeio da véspera emaranhou doidamente os fios, é assim como o marco divisório entre o nosso mundo e o mundo inimigo - duas coisas que de forma alguma poderão ser confundidas. O Capitão Ayrosa acende um cigarro, me oferece. Não fumo. Há um ruído de avião voando muito alto, mas não adianta olhar para cima, pois não existe céu. Somente quando o vento frio e mais forte abre uma brecha na fumaça, podemos enxergar, por poucos minutos, as árvores descamadas pelo inverno e pelos obuses. Além do último foxhole (trincheiras individuais, muitas vezes abertas por obuses inimigos) é a distância branca que não pertence a ninguém, e onde todas as noites patrulhas brasileiras e inimigas estabelecem um perigoso e mútuo contacto, numa das tarefas mais ingratas da guerra. Diariamente, oficiais, sargentos e pracinhas que seguem, protegidos pela noite, para a terra de ninguém, com a missão de fazer prisioneiros ou de reconhecer o terreno, voltam com histórias que dariam um livro - e dos grandes. Como, por exemplo, a história do Sargento Írcio Camargo, um paulistano que na noite de Natal saiu com os seus 23 homens para as armadilhas da brancura sem dono. De quatro da tarde às seis da manhã seguinte eles ficaram caminhando (ou, muitas vezes, rastejando) pela neve, espalhados em pequenos grupos de quatro ou cinco, e de minuto em minuto as balas alemães assoviavam sobre suas cabeças e os morteiros explodiam ao seu redor. O Sargento Írcio Camargo está agora aqui ao meu lado, no Posto de Comando Avançado. É um rapaz de 28 anos, barba por fazer, bigode espesso e descuidado, e parece viver mais no tranqüilo dos mundos quando acende o seu cigarro americano. Ele me diz: Sempre passei o Natal em minha casa, junto aos meus. À meia-noite íamos todos à Missa do Galo e voltávamos para a ceia. Sempre foi assim, desde que me entendo como gente. Neste ano, foi o que o senhor sabe. A guerra muda tudo. Muda até o Natal. Metade da noite os alemães lançaram um ou dois foguetes iluminativos - é assim que se diz? O belo fogo de artifício brilhou no céu em centenas de pequenas estrelas; depois o pequeno pára-quedas iluminado foi descendo devagar , até ficar dependurado num galho sem folhas. O pracinha Francisco Aparecido de Oliveira, de Jacareí, que fez parte da patrulha, me conta: A árvore desgalhada de repente virou uma árvore de Natal. E foi aí então que aquela era exatamente a noite de Natal. O frio estava medonho, entrava pela pele adentro, chegava até os ossos; e o vento levantava a neve e a sacudia sobre os homens do Sargento Írcio. Quando os foguetes iluminados explodiam no ar , e tudo ficava claro como um dia de verão, os soldados brasileiros tinham que se estirar sobre o chão de gelo, tiritantes. Um deles, o pracinha Benedito Moreira Filho, de Pontal (São Paulo), não conseguiu resistir e ficou ali estirado na neve, inerte como um morto. Ele passou 15 dias no hospital, mas agora já está recuperado e me conta sua história: Uma bomba estourou perto e então mergulhei no chão. Outros morteiros começaram a explodir e eu não podia me levantar. Passei alguns instantes (ou foram séculos?) assim, e quando quis me levantar, não pude. Estava mais duro do que um pedaço de pau. O Sargento Írcio é que me trouxe nas costas de lá até aqui ao Posto de Comando. Pensei que ia morrer. O pracinha Darci Ribeiro dos Santos, de Paraúna (Minas), atuou na patrulha como telefonista. O Cabo João Rosa da Silva Ramos, do Rio, me diz que chegou a enxergar à sua frente o movimento de dois ou três soldados inimigos. O Terceiro-Sargento Manuel Gomes Guimarães, que comandou um grupo de cinco homens, me disse: Durante toda a noite fiquei imaginando como estava sendo o Natal no Brasil. Particularmente lá em casa. E o Terceiro-Sargento João Almeida Costa me diz: Nunca senti tanto frio. A noite às vezes ficava clara como se fosse meio-dia. Depois, quando a lua surgiu, ficou ainda mais clara. E eu só queria que aquela lua fosse um sol carioca, sol de dezembro na Praça Saenz Pena. Esta é a história de um Natal brasileiro na frente de batalha. Um Natal diferente, gelado, traiçoeiro, de homens se arriscando numa terra varejada pelos morteiros, pelas metralhadoras. Muitos outros brasileiros, além dos soldados do Capitão Ernani Ayrosa da Silva, viveram também um Natal semelhante. Eles vieram de suas cidades, grandes ou pequenas, de suas capitais, vilas ou simples povoados, e enterrados em suas trincheiras relembraram outros Natais, de paz. Este ano, na noite do Senhor, eles manejaram suas metralhadoras, jogaram granadas de mão, foram feridos ou mortos, mataram e feriram, porque assim é a guerra. E porque assim quis o fascismo de Hitler e Mussolini .É compreensível que nem todos ainda saibam direito por que lutam ou o que literalmente significa a palavra fascismo , no que ele contém de ilógico e de monstruoso, de diabólico e de aberrante. Mas todos já sabem perfeitamente que o tedesco é a essência viva de um estado de coisas agressivas e amoral que tem de acabar .E como nenhum pracinha deseja ter um Natal como este de 1944, sabem que é preciso derrotar os tedescos o mais depressa possível. É uma lição nova que todos eles aprenderam no livro da guerra, um livro aberto e inexorável onde cada página encerra a hora da verdade. "Histórias de Pracinha" - Joel da Silveira |
Foto retirada de
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