UMA HISTÓRIA
IGUAL A TANTAS OUTRAS...
Durante o dia, Anésio costumava ficar na sua Reserva, isto
é, uma barraca maior, preenchendo o Livro de Alterações, em que se
registrava o histórico da vida militar de cada praça da Bateria. Ajudava-o
neste serviço o franzino cabo França, que desempenhara função semelhante
no quartel. Ambos detestavam essa ocupação e, freqüentemente, o cabo sumia
em sua barraca e, pouco depois, o sargento seguia-lhe o exemplo. Naquela
tarde, o sargenteante viu o cabo França desaparecer mais cedo que de
costume. Não ligou muita importância ao fato e permaneceu sentado diante
do Livro, enchendo a custo, de vez em quando, duas ou três linhas. Queria
adiantar o serviço, mas, como fizesse muito calor, a formulação dos
períodos obrigava-o a um grande esforço mental. Pouco demorou para que se
sentisse muito cansado e fosse para a sua barraca. Deitou-se sob o toldo
aquecido, mas não conseguiu adormecer. Em volta, soldados conversavam
sobre a escalada da véspera e faziam planos para o pulo da tarde. E então,
o diabo começou atentar o velho sargento: "Deixa de ser trouxa, Anésio.
Que adianta toda esta dedicação? De qualquer modo, a próxima promoção a
subtenente vai ser concedida a algum puxa-saco e serás preterido mais uma
vez. Aproveita a vida enquanto é tempo. Bem que te disseram que, no alto
do morro, há uma casa com umas pequenas..." Nesse ponto, a imaginação de
Anésio voou alto, apresentando-lhe mil quadros deliciosos, sobre os
prazeres a desfrutar naquela casa do alto do morro. Mas, como estivesse
muito habituado a controlar-se, uma vozinha impertinente foi-lhe
sugerindo: "Não, Anésio, não deves fazer aquilo. Lembra-te de que tens a
folha limpa de qualquer punição. E isso influi muito nas promoções.
Cuidado!" Tais vacilações eram agora muito freqüentes no sargento Anésio.
Passara anos seguidos numa vida metódica e burocrática de sargento da Casa
das Ordens, vida medíocre e apertada, com muitas contas de fim de mês, uma
mulher feia e doente e uma escadinha de crianças franzinas a sustentar e
educar com um ordenado miserável. A possibilidade de ter nos braços uma
mulher jovem e bonita fazia-lhe subir o sangue à cabeça. Depois de se
revirar algumas vezes e matutar sobre o assunto, teve uma idéia que lhe
pareceu genial: iria falar com o capitão Crispim e pedir permissão para se
ausentar do acampamento por algumas horas. "Ora" - pensou ele - "o homem
não pode me negar isto. Afinal, é preciso levar em conta a minha dedicação
e o meu comportamento exemplar durante tantos anos". Não conhecia, porém,
o melhor caminho para escalar o morro e tinha medo de se aventurar
sozinho. Ao mesmo tempo, não queria subir com os outros praças. Não ficava
bem, um primeiro-sargento não pode igualar-se à soldadesca reles. Mas,
positivamente, o sargento Anésio andava inspirado: poderia subir com João
Afonso. Ele costumava classificar a humanidade inteira em oficiais e
praças. Na vida civil, os oficiais eram os doutores, os políticos, as
pessoas importantes em geral. E João Afonso, com o seu curso de Medicina,
assemelhava-se a um aspirante, em vias de promoção a segundo-tenente.
Depois que o rapaz aprovou o plano, Anésio foi falar com o capitão
Crispim, que não opôs objeções sérias. Apenas explicou: "Eu não dou passes
de saída. Mas você pode ir por sua conta e risco. Suponhamos que eu não
sei de nada. Peço-lhe também que saia em segredo, pois não quero que dê
mau exemplo aos soldados. E, sobretudo, procure voltar o mais cedo
possível". E foi assim que o sargento Anésio lançou-se também na batalha
do muro. Se um avião de observação inimigo passasse sobre a cratera
naquela tarde, o observador perceberia um movimento desusado na encosta. O
seu binóculo haveria de acusar pequenos grupos arrastando-se entre o
arvoredo e, no meio desses grupos, talvez notasse uma verdadeira montanha
humana, avançando com dificuldade, parando e tomando a avançar. Pobre
Anésio! Fazia muitos anos que não cometia uma violência daquelas, e a
bronquite crônica não lhe permitia um esforço continuado. Tinha de parar,
encostando-se às árvores esturricadas, de raízes à mostra, e ficava
bufando. João Afonso perguntava-lhe de vez em quando: "Como é? Vamos
voltar? Acho que o senhor não agüenta". Mas o sargento não podia desistir
tão facilmente de encontrar a italiana dos seus sonhos. Por conseguinte,
depois de desabotoar completamente a gandola e bufar mais um pouco,
continuou a subir. Freqüentemente escorregava, mas ia agarrando-se às
raízes e aos troncos das árvores, arranhando o rosto, suando e
esfalfando-se. Finalmente, chegaram ao alto do morro e respiraram
aliviados. As barracas, embaixo, pareciam casinhas de brinquedo. A cratera
toda aparecia como a goela escancarada de um monstro e, do outro lado, ao
longe, surgia o azul do golfo de Nápoles. Junto à brecha do muro,
encontraram uma patrulha de mulatos americanos. João Afonso foi soltando
algumas frases em inglês, o que deixou os rapazes contentíssimos.
Encostaram as carabinas ao muro e ficaram falando depressa, mascando goma
e mostrando os dentes brilhantes. Ofereceram cigarros e, como João Afonso
os recusasse, fizeram questão de que aceitasse ao menos alguns caramelos
enormes, que um deles trazia no bolso do blusão. Depois de algumas piadas,
que João Afonso compreendeu a muito custo, despediram-se e prosseguiram em
seu giro ao longo do muro. Triste e miserável Pozzuoli, esparramada à
beira da baia de águas de um azul tão local, tão raro de encontrar em
outra parte, um azul mais vivo, e ao mesmo tempo mais translúcido, como
parecias mesquinha e suja aos olhos dos soldados! Eles vinham exaustos,
cobertos de poeira, a blusa do uniforme de instrução, o zé carioca, aberta
sobre o peito, mas ansiosos de conhecer a cidade e os seus mistérios. Nas
praças e na avenida principal, margeada por uma réstia insignificante de
praia, coberta de pedregulho, circulava a mesma multidão heterogênea de
Nápoles. Apenas, sentia-se ali um relaxamento maior, um abandono completo
de todas as regras de moral e boas maneiras. De quando em quando, via-se
um polícia militar, com uma faixa vermelha no capacete, mas nenhum deles
se preocupava com a confusão em torno. Soldados bêbados passavam berrando,
outros se deitavam simplesmente na sarjeta, muitos vomitavam ou urinavam
ali mesmo. Para os nossos praças, aquilo parecia a derradeira escala da
degradação, e todos tinham certeza de que jamais chegariam a tal estado.
Aos seus olhos inexperientes, a cidade aparecia como uma Sodoma asquerosa,
que um dia, diziam os mais religiosos, ainda haveria de provocar a cólera
divina. " Não admira que essa terra tenha tantos vulcões. É que, de vez em
quando, Deus precisa castigá-los". Positivamente, os brasileiros
recém-chegados eram muito diferentes daqueles outros soldados endurecidos
na guerra. Mostravam-se quase todos sentimentais e compassivos. Era com
grande espanto que os paisanos os viam afastarem-se, para ceder passagem a
uma senhora, ou tomar uma criança pela mão, afim de ajudá-la a atravessar
a rua. As maneiras afáveis de nossa gente pareciam anacrônicas na Pozzuoli
daqueles dias. Era freqüente encontrar-se algum dos nossos crioulos parado
no meio da rua, cercado de uma chusma de crianças, distribuindo biscoitos
ou balas trazidas do Brasil. Mas, por fim, aquele espetáculo deprimia. As
crianças maltrapilhas, de braços como espetos, aqueles olhos parados,
aquela palidez... E, invariavelmente, o soldado ia terminar a tarde
encharcando-se de vinho ruim e azedo, que provocava azia e mal-estar.
Depois, sentia-se mais próximo dos soldados de outras nacionalidades, que
passavam abraçados, cantando, ou que se deitavam na sarjeta. João Afonso e
Anésio alugaram uma caleça de capota arriada e ficaram andando pela
avenida à beira-mar, para grande alegria dos outros praças da Bateria, que
iam encontrando pelo caminho. "Rei Momo caiu na farra!" - diziam os
soldados, vendo o corpanzil do sargenteante esparramado no assento da
caleça. Anésio não parava de resmungar, pois as mulheres que se viam
tinham uma aparência miserável e honesta, pareciam ariscas, inabordáveis.
Descendo da caleça, caminharam pelas ruas principais, depois entraram nas
vielas secundárias, que lembravam em tudo as ladeiras mais miseráveis de
Nápoles. Havia americanos espadaúdos farejando tudo, aparentemente com os
mesmos propósitos do sargenteante. Ao dobrar uma esquina, viram pregadas
num sobrado a bandeirola da Cruz Vermelha e a placa "Prostation". Um posto
de profilaxia contra doenças venéreas, onde se aplicavam preventivos
depois de contato com mulher, e, apesar de tudo, não se encontrava
nenhuma. Anésio abordou também alguns scugnizzi, mas não foram capazes de
dar a indicação desejada. "Ora, e as vantagens que contou o pessoal que
pulou o muro ontem!" Depois que o sargenteante se desiludiu quase por
completo, Alípio conseguiu convencê-lo a ir jantar. Um molecote levou-os a
uma sala no terceiro andar de uma daquelas casas velhas e sujas da avenida
à beira-mar. Sentados diante de uma travessa com ovos estrelados, servidos
por uma velhinha magra, viram entrar uma loira, meio raquítica, olhos
azuis parados e uma cicatriz estreita e comprida no queixo. A moça
cumprimentou-os e disse que se chamava Rina. Depois de comer os ovos e
beber uns copázios de vinho tinto, os três sentiram-se um pouco mais à
vontade. Anésio começou a dar palmadinhas nas costas da moça, que se foi
encolhendo sobre a cadeira, embora não parecesse querer sair dali. O velho
praça expandia-se cada vez mais. "Io andare contigo ao Brasile... sim,
sim, niente guerra... tudo paz... io havere una boa casa... automóvel...
fon- fon... fon-fon... una beleza... in Brasile grandes casas... muito
automóvile... luxo, conforto... io havere dois cadilaques... sapere que é
cadilaque?... máquina americana... tudo lustroso... quando io voltare do
trabalho, pegare a máquina e... fon-fon... fon-fon... una maravilha... sí,
sí... io havere cadilaque... ma forde ou chevrolete todo mundo havere...
ah Brasile..." Estava mesmo comovido. Por pouco, duas gordas lágrimas não
lhe escorregaram pelas faces suadas. Mas, de repente, lembrou-se do
objetivo principal e disse em voz baixa a João Afonso: "Escuta, velho,
como é que a gente vai fazer? Acho que o melhor é você ficar antes com
ela... e vou depois". "Deixe disso. Parece que é séria". "Séria ? Não é
possível... Me disseram que é tão fácil nesta terra..." "Então,
pergunte..." "Hum... você sabe... o meu italiano... você já deve falar
melhor. Por que não me ajuda?" "Não, para isso ainda não dá". "Neste caso,
pergunto eu... mas espere um pouco..." Com os novos copázios, porém, foi
perdendo a loquacidade e passando a um estado de profunda melancolia.
"Pois é, velho... que é que estou fazendo aqui? Eu, um pai de família...
você me compreende... a carne é fraca... mas bem que eu gostaria de
resistir... ah, se você soubesse como a minha Maria é boa... eu é que não
presto... é verdade que ela está velha e acabada, mas eu também já não sou
nenhum galã... Ah, minha vida, minha vida... Eu só queria era chegar a
subtenente... Então sim, as coisas iam melhorar. Enfim, o Fundo de
Previdência... bem, você que é doutor, que é que me diz? Será que eles vão
nos pagar aquele dinheiro todo? Sabe? Eu não tenho confiança nenhuma nas
coisas do governo, na Viúva, como se diz... Quando precisam da gente, é
palavra bonita, discurso, mistifório; depois nos dão um pontapé na bunda e
acabou-se... Bem... é bobagem pensar nessas coisas... eu lá sei o que vai
ser amanhã! O melhor mesmo é beber. À sua saúde, menina!" Levantando-se da
mesa, caminhou na direção da moça. Abraçou-a e, como ela se encolhesse,
foi dizendo: "Eh, bimba... niente medo... io não fazere niente... muita
bebida... troppo cheio... io não fazere nada, não..." Vendo as coisas
nesse pé, Alípio pagou a despesa e arrastou Anésio para fora. O ar fresco
da tarde fez bem ao sargento Anésio, que voltou a si e começou a
lamentar-se por ter deixado escapar aquele pirão. Procurou a casa onde
estiveram, mas não conseguiu encontrá-la. Continuaram vagando pela cidade.
Começou a escurecer. Pouco depois, teve início uma correria, pois, estando
próxima a hora do toque de recolher, civis e militares apressavam-se
igualmente. Magotes de soldados encaminhavam-se para a estrada de Nápoles,
alguns carregando nos ombros um companheiro embriagado. João Afonso e
Anésio juntaram-se a um grupo de brasileiros, mas o sargenteante logo se
lembrou de que a dignidade militar não lhe permitia andar em tão reles
companhia: o mais graduado era um cabo. Depois de uma comprida caminhada,
chegaram ao alto do morro. Anésio cambaleava. Resfolegou um pouco mas,
depois que atravessaram a brecha do muro, alegrou-se de repente, sentindo
as pernas leves na descida. Escorregava, levava tombos, rolava pela
encosta, rindo muito e soltando gritinhos de satisfação. Chegando ao
acampamento, dirigiram-se para a Bateria e foram detidos pelo plantão, que
lhes anotou os nomes. "Me desculpe, sargento Anésio, mas foi ordem do
capitão". O sargenteante caminhou cabisbaixo para a sua barraca. João
Afonso pouco se incomodou por ter sido surpreendido. Entrou na barraquinha
e estirou-se sob a manta. Ao lado, o seu companheiro de rancho, um
nortista franzino, ressonava baixinho como uma criança. Sentiu a modorra
subir-lhe pelas pernas e espalhar-se pelo estômago. E como o sono
estivesse chegando, sorriu satisfeito por ter vencido, mais uma vez, a
batalha do muro. (...) Anésio dá um jeito no corpanzil, arruma o quepe,
passa um pentinho no cabelo e esgueira-se sorrateiro pela escada. Tem
vergonha da sentinela, que pode tolher-lhe a passagem e, sobretudo,
fazê-lo sofrer um vexame. Por isso, ao sair do casarão, procura coser-se à
parede. Finalmente, passado o perigo, toma o caminho de Silla. A estrada
gelada ao luar, tem algo de fantástico; ela atrai o olhar com os seus
perigos, bela e diabólica, em meio aos pinheiros e às bétulas nuas. Anésio
avança para Silla. Na ponte, arrepia-se todo, com medo de algum estilhaço.
As vezes, ouve granadas caindo perto mas, depois dos primeiros sustos ali
na estrada, acostumou-se e sabe que não há grande perigo. É um tiro
impreciso, sem observação, calculado sobre coordenadas da carta. Chegando
em Silla, embarafusta por uma escada e bate numa porta, sendo recebido por
Giovanna, viúva quarentona, morena, cheia de corpo, de olhar afável e
tendo um começo de cabelos grisalhos junto às têmporas. O romance começou
quando o comando do Grupo ainda estava em Silla. Toda a Bateria-Comando
comentou então a novidade. Na hora do almoço ou do jantar, ele entrava na
fila, esperava a sua vez, e, depois de servido, caminhava sobre a neve
para uma árvore à beira da estrada, onde Giovanna o aguardava. Ela
despejava em duas latas o conteúdo da marmita de Anésio e continuava de pé
junto à árvore. Anésio tornava a entrar na fila para o engajamento, a
distribuição das sobras. Tomava a refeição às carreiras e, depois,
verificava se sobrara ainda alguma coisa, após o engajamento. Neste caso,
fazia um sinal para Giovanna, que vinha e enchia mais as duas latas. Pobre
Giovanna. "Mia povera Giovanna", como dizia Anésio nos momentos de efusão.
"Corre, vá. I ragazzi stano esperando". Ela saía correndo, segurando as
latas. Entrava num dos casarões e subia para o segundo andar. No quartinho
abafado, havia três crianças sentadas no chão. Três crianças pálidas,
magras, doentias. Anna, Gioia, Ricardo. Anna de doze anos, Gioia de dez,
Ricardo de sete. Crianças sem alegria, sem infância, sem brinquedos. Anna
parece ter oito anos, Ricardo no máximo quatro. "Não foi para isto que as
pus no mundo, Anésio, mio povero Anésio" - disse ela certa vez. Tem um
jeito bom de passar a mão em seus cabelos. Uma voz cantante, doce.
Principalmente quando diz: "Buona sera." Haverá música mais sublime que
esse "buona sera" lento, cantado, carinhoso? Anésio gosta de ouvi-la
falar. E ela conta toda a sua vida no piccolo paese próximo a Vergato,
transformado atualmente em terra de ninguém. A infância, a mocidade, o
casamento, os filhos, a morte do marido. Toda uma vida simples e igual de
camponesa remediada. Depois, a guerra, a fuga pelas estradas, o refúgio em
Silla. Ali, pelo menos, tinham aquele cantinho, e não valia a pena
aventurarem-se mais longe pelas estradas. Vivia-se apesar de tudo,
arranjava-se comida com mi buon Anésio, podia-se esperar ali o fim da
guerra. As crianças gostavam muito dele. Sentavam-se no seu colo,
metiam-lhe a mão no bolso, para ver se trouxera caramelli. Anna de olhos
profundos e sérios, rodeados de círculos roxos, Gioia de cabelos de ouro,
Ricardo de corpo franzino. Eram os seus bambini, a sua família. Não
adiantava fingir que era simples aventura, coisa de homem, de soldado.
Realmente, aproximara-se da viúva pensando principalmente no seu corpo
cheio, maduro, de pernas grossas e seios robustos. Mas, depois, foi aquela
amizade boa, aquele convívio afetuoso, aquele carinho feminino em sua vida
rude e insípida. Lembra-se das primeiras conversas no quartinho estreito.
Ele ficou sentado na cadeira, a única existente ali, a viúva ajeitou-se no
chão, ao lado das crianças deitadas sob o edredão da família, e que se
apertavam uma contra a outra, para esquentar um pouco os corpos mal
nutridos. E ele ouvia Giovanna falar. Espiava o edredão com o rabo dos
olhos. Lembrava-se de um soldado que lhe falara sobre uma conquista que
fizera, num quarto repleto de refugiados (sfolati), onde se deitara com a
mulher sob o edredão comum, ao lado de outras mulheres, de velhos e
crianças. Não, impossível, era o cúmulo da degradação! Ali estava aquela
mulher, falando da sua vida. Era tão bom ouvi-la! Escurecia, as granadas
caíam próximo à ponte, e a mulher não se cansava de falar. Anésio saiu do
quarto às escuras, ela o conduziu até a escada. No dia seguinte, beijou-o
na face. Carinho, intimidade, ternura - nada mais, parecia. Uma semana
depois, tentou agarrá-la na escada (a gente é homem, afinal de contas).
Ela desvencilhou- se. "Non, Anésio... i soldati..." - disse, apontando a
escada, por onde costumavam transitar praças alojados no sótão. Mas, por
despedida, ofereceu-lhe às carreiras os lábios carnudos. Na estrada de
Silla, a sinistra 64, pensava naqueles lábios, no corpo ainda bom de
Giovanna. Mas, sobretudo, naquele calor que se introduzira em sua vida, e
que o impelia estrada afora, os bolsos do capote repletos de escatoletas,
na direção do vilarejo bombardeado, fazendo esquecer o medo da morte e o
temor ao coronel, a uma repreensão na Folha de Alterações, às zombarias
inevitáveis dos praças. (...) Anésio esparramou o corpanzil numa poltrona
meio desconjuntada, que mal agüentava o seu peso, e espichou as pernas,
colocando-as sobre um banquinho. A mulher lavava roupa no tanque. As
crianças estavam na escola, com exceção do Chiquinho, o caçula, de um ano
e meio, que se arrastava pelo chão, brincando com umas tampinhas de
garrafa de cerveja. O pensamento de Anésio voou longe. Os lábios carnudos
de Giovanna, os seus olhos afáveis, a voz dizendo com aquela doçura
peculiar, que certamente não existe em nenhum outro país: "Buona sera".
Fora bom rever Maria, com o seu corpo feio e disforme, a sua fisionomia
familiar, os seus modos um tanto bruscos, abraçar e beijar os filhos, que
cresceram tanto naquele ano. Criança é bicho teimoso, que cresce e se
desenvolve, que brinca e dá risada, mesmo numa casinha apertada de
subúrbio. Pensou na luta que Maria sustentava para equilibrar o orçamento.
"Boa e feia Maria" - repetiu mentalmente, a sensibilidade à flor da pele.
Giovanna... Sentia-se uma espécie de bígamo mental. Mas que culpa tinha
ele? Era da vida, do destino. Para que foram mandá-lo para a guerra? Ao
beijar, antes de dormir, os lábios ressecados de Maria, vinha-lhe à
lembrança a frescura de flor que havia em Giovanna, a sua robustez de
campônia, a vitalidade que transparecia em todo o seu ser, apesar da vida
difícil que levara. É bom não ouvir mais assobios de granada, não passar
frio, mas como é duro habituar-se novamente à condição subalterna. A vida
de campanha subvertera todos os valores que Anésio se acostumara a prezar.
Ele que sempre fora humilde, passara a desfrutar uma condição privilegiada
em país conquistado, a ser tratado com subserviência pelos que dependiam
dos seus cigarros e chocolates. As mulheres que tivera nos braços, por
umas latinhas de carne ordinária! Ele que fora um exemplo de cumprimento
do dever, que atendera às ordens mais absurdas e cumprira as tarefas mais
cacetes, ele, o obediente, o passivo Anésio, passara a transgredir os
regulamentos, a sair às escondidas do acantonamento, a fim de visitar a
sua Giovanna, os seus bambini... E agora? É continência pra cá,
continência pra lá... Sim, senhor major... Pois não, senhor tenente... De
uma feita, quando andava na rua, distraído, um capitão de polícia
chamara-lhe a atenção porque não fizera a continência regulamentar. O
cúmulo! Um herói da pátria, que passara o inverno em frente do Castelo,
ser assim desmoralizado em plena via pública por um oficial meganha!
Engolira a ofensa, mas ficava de orelhas em fogo só de lembrar o ocorrido.
A vida cotidiana era mesmo um rosário de pequenas humilhações,
precisava-se andar de cabeça baixa. Por enquanto, a situação não era das
piores, empatara o Fundo de Previdência num terreninho vagabundo, e ainda
sobrara algum dinheiro. Mas, depois, seria o problema de sempre, com as
crianças crescendo, precisando de roupa, de sapatos. Todavia, naquela hora
de lassidão, seu pensamento voa para longe da realidade rude,
transporta-se instantaneamente sobre o mar encapelado, depois sobre o azul
tranqüilo, e leva-o para junto de Giovanna, tão boa, tão meiga, tão
apetitosa, com os seus lábios carnudos de jabuticaba
madura.
"Guerra em
Surdina" Boris Schaiderman |