FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA


Peça de artilharia, devidamente camuflada, prepara-se para o tiro.
Foto escaneada do livro "O Brasil na II Grande Guerra"
Ten. Cel. Manoel Thomaz Castello Branco

 

O Sofrimento...

"Não há palavras capazes de descrever uma batalha. É uma coisa que está acima do alcance dos homens. Ou a descrição nos termos secos e técnicos de um boletim de Estado-Maior, ou então pura fantasia de algum lírico, que nunca esteve na guerra. É impossível dar-se a impressão fiel de uma batalha. É como se quiséssemos descrever a história de muitas vidas, a história de muitas mortes, de atos humanos que vão desde os mais mesquinhos até os mais nobres, a história desse egoísmo que nos invade a todo momento quando sentimos que estamos vivos, que ainda muitos têm que morrer, mas que com certeza não seremos nós. Tudo isso a par de um desprendimento formidável, que nos faz ficar inconscientemente sob o fogo da metralha, às vezes imóveis, sem nada poder fazer, talvez com vontade de poder sair daquele inferno, mas ficando porque assim manda o dever, essa forma abstrata, essa convenção humana, essa coisa impalpável, a honra, pela qual morremos, pela qual ficamos expondo os nossos miseráveis corpos a toda sorte de mutilações possíveis, a todos os sofrimentos, quase sempre sem ver quem nos atinge, sem nada podermos fazer para evitá-lo. Não sei, mas quem quiser descrever uma batalha, talvez tenha que começar assim: Um punhado de homens fardados designados por um número, agrupados em uma unidade, saiu de suas trincheiras, para dar aquilo que têm de mais caro, que nenhum deseja perder - a vida - em troca de três simples palavras 'Objetivo a Atingir'. Que mundo, que coisa não encerram estas palavras!".

Joaquim Xavier da Silveira, 1º R.I.
"Cruzes Brancas - O Diário de um Pracinha"

 


Soldados do Regimento Sampaio da FEB escoltam prisioneiros alemães,
capturados em Monte Castelo, 1945. Itália.
Arquivo Diana Oliveira Maciel

O HOSPITAL 16

O major-médico Duarte Nunes me aponta o pracinha estirado na mesa de operações:
- "Foi uma mina". Os estilhaços penetraram profundamente no ventre, e um outro quase arranca a mão direita do rapaz. Estamos na "sala" de operações cirúrgicas do Hospital 16, a poucos quilômetros da frente brasileira. É uma sucessão de dezenas e dezenas de barracas, grandes e pequenas. Aqui dentro há capacidade para mais de mil leitos, há médicos, enfermeiras e doentes brasileiros e norte-americanos. Até bem pouco tempo, para um correspondente brasileiro, um hospital era um mundo proibido. Não que a nós faltassem informações precisas sobre feridos, acidentados e doentes. É que tudo isto, quando daqui saía nas reportagens e crônicas, esbarrava no Brasil com a estúpida orientação do finado DIP, para quem o soldado brasileiro deveria ser sempre excepcional, à prova dos desastres da guerra. Esta tabela, por exemplo, que tenho agora diante de mim, tão explícita, há dois meses não poderia, de maneira alguma, ser levada até o Brasil. Ela me diz que no mês de janeiro, 40 feridos, 64 acidentados e 450 doentes brasileiros passaram por este hospital. No mês de fevereiro, o mês de "Castelo", o numero cresceu: 381 feridos e 828 acidentados. E até o dia 20 deste mês de março transitaram por aqui 132 feridos, 35 acidentados e 897 doentes, entre oficiais e soldados da Força Expedicionária Brasileira. Escrevo 132 feridos, mas o major pede que corrija: são 133, porque falta acrescentar à lista aquele pracinha que está sendo operado agora. A enfermeira Carmita Corrêa me esconde o rosto atrás de uma máscara de pano, branca e esterilizada, e me deixa num ângulo da sala, de cujo teto despenca, como um sol, uma forte luz fluorescente. Vejo o bisturi rasgar o baixo-ventre do pracinha, vejo seu sangue vermelho e grosso empapar as mechas de algodão, vejo sua carne rubra se abrir numa ferida profunda. A mão direita, estraçalhada pelos estilhaços, foi entregue a outro cirurgião brasileiro, um rapaz pálido e de óculos. Este Hospital 16 já tem uma longa história: ele veio da África, esteve acampado no deserto, mudou-se depois para a Sicília, passou uns tempos em Nápoles. Foi em Nápoles que o vieram encontrar as primeiras enfermeiras brasileiras chegadas à Itália, 50 moças, mais ou menos, que hoje estão espalhadas por diversos setores da frente de batalha. Nesta tarde, segundo dia da primavera, sou apresentado a todas que neste momento se encontram no 16, servindo aos soldados brasileiros. São precisamente 15, e todas elas têm o posto de segundo-tenente. Estas moças levam aqui uma vida terrivelmente cansativa: nove enfermarias do 16, cada uma com capacidade para 36 doentes, estão aos seus cuidados. De outubro à presente data, 2 025 doentes brasileiros já passaram pelas suas mãos. Como para os pracinhas dos setores avançados, o descanso aqui era raro. As 15 moças se distribuem, por isso, em duas turmas: uma que trabalha durante todo o dia, das sete da manhã às sete da noite; outra, que não dorme, das sete da noite às sete da manhã. As que ficam de vigília deixam seus postos e seguem diretamente para o breakfast. Depois, lá para as nove horas de manhã, se mantêm nas suas pequenas barracas - algumas são simples, meigas e bem cuidadas como um berço - e tentam dormir pelo menos quatro horas do dia. Mas é um sono irregular, pois que em cada barraca mora uma média de três enfermeiras, e quase sempre nem todas pertencem à mesma turma. Às vezes acontece que o sono é muito, e a enfermeira, exausta, cochila ou adormece no seu posto - mas é uma trégua efêmera, despertada de minuto a minuto por um gemido de doente ou um toque de campainha. Quando há push lá na frente - push é como elas, brasileiras e americanas, denominam as ofensivas -, o trabalho triplica ou se multiplica indefinidamente. Então não há mesmo tempo para cochilos ou sonos rápidos. Os feridos entram numa corrente contínua, as moças correm de um canto para outro, os penteados se desmancham e caem sobre os ombros, as olheiras rodeiam seus olhos e os lábios ficam esbranquiçados pela ausência do batom. Já as vi assim nos dias e noites de frente agitada, pequenos dínamos sem descanso, espalhadas pelas enfermarias, metidas nas ambulâncias e nos postos de coleta, dissolvidas no penoso trabalho das salas cirúrgicas. Uma vida dura. Em Pisa, como os soldados, estas moças tiveram seus acampamentos armados na beira do Arno. E quando o Arno cresceu muito e transbordou, também elas, como os soldados, viram suas barracas inundadas e destruídos seus pertences e bagagens. Nas suas pequenas barracas, agora inundadas de todas as flores da primavera - uns trazem lírios, outros begônias, trago apenas madressilvas -, elas atravessaram o terrível inverno, e o primeiro mês de neve as encontrou encolhidas nos seus leitos, sem estufa e enroladas em cobertores que não ajudavam muito. Lembro-me daquela noite, em dezembro, em que as vim encontrar aqui mesmo nesta barraca, quatro delas, silenciosas e tristes nos seus cantos, enroladas até o pescoço - e a neve caía lá fora, dorida e implacável, como uma tempestade branca que não fosse acabar mais. E também como os soldados brasileiros, as moças enfermeiras tiveram, aqui na guerra, que improvisar. Elas receberam no Brasil um curso de enfermagem de apenas seis semanas. Encheram-se de teorias e métodos que, na prática, se revelaram inúteis e ineficientes. Chegaram cheias de lições brasileiras que não puderam ser aproveitadas pela técnica americana. Foi preciso, então, aprender tudo de novo: desde a identificação com os novos medicamentos até o modo mais rápido de dar uma injeção. "A guerra foi a nossa verdadeira escola", me dizem elas. A guerra as foi receber em Nápoles, e as trouxe, num caminho cujo descanso pode ainda estar distante. Amanhã, sem dúvida, elas estarão mais distantes, como a vanguarda dos Exércitos. Eram tristes e frias suas barracas no inverno, mas agora são claras e mornas como pequenos lares suburbanos. Quando uma delas tem umas pequenas férias, e vai a Florença ou Roma, traz de lá coisas que aos poucos vão dando aos acampamentos errantes a aparência enganosa de um lar fixo: bibelôs, cortinas brancas. - "Não servem para nada, mas são tão bonitinhas...", como diz a enfermeira Berta, toalhas bordadas, uma infinidade de pequenas e graciosas coisas que elas esmiúçam nas vitrines das cidades grandes. A barraca das enfermeiras Carmita e Berta, por exemplo, já possui até um divã vermelho e macio arrancado de um belchior. Há também um rádio que, de madrugada, traz até aqui notícias e cantos do Brasil. Ontem, quando estive no 16, havia 146 brasileiros baixados. O trabalho era extenuante. A sessão de cinema, às duas horas da tarde, não pôde ser assistida porque os doentes não deixaram. Onze operações, duas delas muito delicadas. E do field mais próximo do front acabavam de telefonar comunicando a remessa de mais cinco feridos. A enfermeira Berta, que havia marcado uma "visitinha" a Florença, na manhã seguinte, teve que adiar o passeio para "um dia D qualquer". Uma vida, enfim, como qualquer outra vida da guerra: sem poesia, sem romance, árdua, exigente, desconfortável, incerta. Mas as moças nunca se queixam. Ou por outra, queixaram-se uma vez, precisamente a este correspondente, a respeito de uma mensagem que veio aí do Brasil, assinada pelas senhoras da Legião Brasileira de Assistência e endereçada aos soldados brasileiros. As senhoras da Legião saudavam os "bravos expedicionários" e lamentavam não estarem eles sendo assistidos de perto pela "mulher brasileira", que, contudo, os acompanhava "em espírito". As enfermeiras me disseram: - "Nós aqui dando um 'murro' medonho, trabalhando dia e noite, e aquelas senhoras a dizerem que a
mulher brasileira está aqui só em espírito. É uma injustiça que nos fazem. Estamos aqui cara a cara com as coisas tristes da guerra, as senhoras deviam saber disto. E esta história de 'espírito sempre presente' resolve muito pouco ou quase nada. O que resolve é o que nós estamos fazendo: muito trabalho, muita abnegação, muita paciência. E penicilina
". Talvez não tivessem sido exatamente as palavras que escutei das moças, mas foi isto o que quiseram dizer-me. E creio - nem se discute - que elas têm razão, pois que não existe coisa que mais irrite uma pessoa no front do que a distante e cômoda demagogia de salão.

Joel Silveira
"O Inverno da Guerra"

 


Trincheira Brasileira
Arquivo Diana Oliveira Maciel

"A vinte metros do posto onde estou, há duas padiolas bastante ensangüentadas, visivelmente mostrando pedaços de carne humana; mais adiante, roupas de soldados americanos e brasileiros tingidas de sangue destes heróis que jazem no cemitério, ou talvez ainda estejam agonizantes no Hospital de Pistóia (...) Subo ainda mais o morro e chego a uma contra-encosta, numa casa que está paralelamente destruída. Cautelosamente a investigo com curiosidade. Eis o que vi dentro dela: num pequeno quarto, que suponho ter sido um posto médico de emergência, vejo numa mesa muito ensangüentada, gaze e algodão hidrófilo, também ensangüentados, dando um aspecto de que ali alguém lutara para salvar vidas agonizantes. Prossigo o meu lúgubre passeio. Ao descer uma baixada, de súbito, encontro uma cova com três pernas humanas insepultas, talvez não enterradas por falta de tempo dos que não sobreviveram. O que fiz com muito esforço, ajudado por um companheiro. A dez metros, donde estou, vejo uma árvore frondosa, cujo tronco, mostra vestígios de sangue e alguns fragmentos de carne humana, e a uns dois metros além, está um braço e a metade duma coxa.(...) O que mais me horrorizou, caro leitor, foi ver um corpo sem cabeça, parecendo que um estilhaço de granada cortou-a, jogando-a tão longe, que eu e meu companheiro, ao sepultar o corpo, procuramo-la e não a encontramos. Depois de termos procurado bastante a cabeça daquele cadáver, que era alemão, o meu companheiro, que é muito espirituoso, disse: -Tedeschi portato via, per fare mangiare. Afinal, ao regressarmos a nossos postos, encontro um cadáver, que suponho ser de um oficial alemão, com o peito crivado de balas de metralhadoras. Estava ele debruçado por cima de uma fotografia, que creio ser da sua esposa, porque mostrava uma mulher sentada com dois garotos ao seu lado. Volto para minha posição um pouco constrangido por ter sido testemunha de quadros dum horror sem par. Assim é a guerra que faz retumbar a sua voz através dos campos de batalha da velha Europa. Se eu escrevi algo que vos produziu sensações de horror, perdoai-me caro leitor".

Nilson Costa, 11º R.I. - "Vida e Luta de um Pracinha"


Trincheira Brasileira
Arquivo Diana Oliveira Maciel

O COMBOIO

Numa das noites fomos de jipe até a retaguarda, buscar material de rádio. Na volta entrei na cauda de um longo comboio. Estávamos numa zona sem "black-out". Usávamos um farol furta-fogo e luzes vermelhas. A estrada era cheia de curvas. Dos carros que iam na frente via-se somente duas luzes vermelhas. Era uma longa procissão de luzes vermelhas, umas atrás das outras. A medida que entravamos na zona de "black-out" total, aquelas únicas luzinhas vermelhas também se apagavam. Era aterrador; cada luzinha que se apagava era pelo menos uma vida que ali ia, que mergulhava agora na escuridão total, sentindo somente o ruído surdo do motor e o bater do próprio coração. Trevas, sempre trevas, e à margem da estrada as eternas faixas brancas. O bater do coração e o ruído dos motores; em seguida a sensação de perigo, o sangue começava a circular latejando nas veias, e a vista a doer pelo esforço feito para enxergar naquela escuridão. De repente, quebrando aquela angústia, o assobio estridente, a chama alaranjada, mais outro assobio, outra chama, outro estrondo. Começava, então, novamente, o pandemônio: os carros atingidos, carne humana e ferragem misturadas, os vultos dos carros obedecendo ainda à mesma ordem,. à mesma andadura, cada qual tendo no volante alguém que sente que ainda vive porque o coração bate, o sangue lateja, porque seu corpo não se misturou com a ferragem, ainda sente que vive porque tem medo de morrer. Em volta tudo são trevas... Amanhecemos no P.O. de Sassomolare, de onde se avistava claramente Montese, o objetivo do 11º R.I. Os mineiros iriam atacar aquela cidadela alemã, e o nosso regimento, por meio de um batalhão, iria ajudá-los. O combate começou. Pela primeira vez vimos uma batalha em todo o seu conjunto. De madrugada, a preparação da artilharia; depois os tanques avançaram protegendo os infantes nos seus flancos. Assistia a tudo de camarote, se bem que pouco seguro. As sobras chegavam até nós, principalmente quando os nossos morteiros começaram a"tossir" para auxiliar os bravos mineiros. Acho que foi um dos combates que maior número de baixas causou à FEB. Morreu muita gente. Uma cena ficará para sempre gravada em meus olhos. Um pelotão corria em campo aberto para tomar posição numa contra-encosta. Os homens, espalhados, podiam ser vistos com facilidade, porque estavam perto da posição onde nos achávamos, um "foxhole" guarnecido por uma metralhadora, que fazia fogo de suporte para o avanço. Um soldado corria um pouco isolado dos demais. Súbito, o assobio fatídico e, exatamente no local onde ele se encontrava, surgiu uma luz alaranjada. Um bomba tinha-lhe caído aos pés. Correra de encontro à morte. No local ficou um buraco negro; alguns segundos antes, ali se achava um homem com vida, saúde, naturalmente cheio de esperanças, desejos, agora um buraco, um simples buraco negro. Os outros tinham continuado avançando à procura da morte. Houve companhias inteiras dizimadas nesse combate. Caiu a noite e Montese ainda era dos alemães. Com a noite veio o silêncio, só rompido pelo gaguejar sinistro das metralhadoras, cujas balas trançantes enfeitavam as trevas. Passamos a noite ao pé da estação de rádio, ouvindo e transmitindo mensagens. Vizinha a nós, num outro "foxhole", havia uma guarnição de morteiros; o cabo um nortista simpático e despachado, veio até nós para nos dar um dedo de prosa e filar um gole da nossa "grapa". Chegou-se e foi falando naquela voz descansada de homem do norte: - Você viu, velhinho, que revoluçãozinha braba essa de hoje? Esses "tedescos" são mesmo "cativos". Daqui a pouco vou botar o meu bichinho pra tossir novamente. Ficou algum tempo falando sobre banalidades da vida de soldado, um bombardeio mais duro, uma noite que passara atirando o tempo todo para cobrir uma patrulha, e a conversa acabou como todas: sobre a terra natal. Depois de tomar mais um golezinho foi andando, num passo gingado, até o seu buraco. Dentro em pouco começamos a escutar o ruído seco e monótono, como de uma tosse: era o morteirinho atirando. Estávamos completamente abstraídos na nossa tarefa, quando fomos sacudidos por uma explosão violenta, que não teve assobio precursor. Uma granada tinha explodido no "foxhole" onde estava o morteiro. Corremos até lá e encontramos o cabo sendo socorrido por dois companheiros. Uma das granadas explodira na sua mão, ao ser colocada na boca do morteiro. O seu corpo estava completamente mutilado, sem mãos, o rosto queimado. Alguém correu para buscar socorro. O cabo gemeu baixinho, bem baixinho, tentou dizer alguma coisa... e morreu. Um silêncio descia sobre todo o "front". Fiquei algum tempo contemplando, imóvel, aquele corpo ainda quente, com a farda toda tinta de sangue. Vieram dois maqueiros e o levaram. Voltei ao meu posto, sem dizer palavra. De resto, ninguém comentou. Ficamos assim até a hora de sermos rendidos. Fui dormir na minha trincheira. Ao meu lado, Cléber e Baraúna dormiam, ignorando a tragédia que tinha se passado lá fora. Achei duas cartas chegadas naquela noite, que tinham sido guardadas pelo Baraúna. Acendi meu "flash-light" e comecei a lê-las. Uma era de uma senhora casada, irmã de uma amiga minha. Eram linhas animadoras, em que ela demonstrava o seu agradecimento por estar eu lutando por uma paz duradoura. Tinha filhas pequenas e não queria vê-las envolvidas noutra guerra. A outra, de um amigo, que com a despreocupação própria da idade, descrevia algumas festas e finalizava dizendo: - Você aí deve estar se divertindo bem. Pensei no cabinho que eu vira estirado lá fora, olhei para os meus dois companheiros que dormiam profundamente, confiantes na sorte de que nenhuma bomba cairia naquele frágil abrigo, para transformar o seu sono no sono eterno. Não havia dúvida, realmente, a idéia de divertimento pode ser muito elástica. Apaguei a lanterna, levantei o cobertor que encobria a estreita abertura do abrigo, e fiquei pensando. Meu pensamento voou longe: naquele instante, quantos velhos se divertiam em prazeres mundanos, em companhia talvez de belas jovens, enquanto uma mocidade viril ali estava, privada de tudo, derramando seu sangue?! E para que? Talvez para cimentar uma nova Paz, mas essa Paz seria, quem sabe, seguida de nova guerra. A mocidade é muito crente e idealista, que o digam as cruzes brancas que vi plantadas em toda a Itália. Eram o testemunho mudo do esforço feito por essa geração sacrificada, que é a nossa, nascida entre duas guerras. Nascemos no fim de uma, para irmos morrer no fim da outra. Quem podia garantir que todo aquele sacrifício não seria inútil? Porque estávamos nós ali, expostos a tudo, quando outros milhões da mesma idade se achavam desfrutando os prazeres naturais da vida, na segurança de seus lares? Porque viemos nós, um pequeno punhado em relação à outra grande maioria, os eleitos? Alguém tinha que vir, é verdade, talvez fôssemos nós os eleitos, mas porque nós, paisanos, convocados à última hora? Não era um sentimento de revolta, mas uma ânsia de saber porque. Não éramos nem melhores nem piores do que os outros que ficaram. Quando voltássemos, iríamos ocupar o mesmo lugar de antes, ombro a ombro com os demais. Essa é uma pergunta que está sempre na mente de quem faz uma guerra. Deixei de pensar e fiquei olhando o dia amanhecer. Uma suave quietude dominava o ambiente, uma casinha entre dois montes de feno. A paisagem bem bucólica, nem parecia ter sido um teatro de guerra. Mas à direita, a Igreja de Sassomolare, com a sua torre semi-destruída, testemunhava que nem os símbolos da fé eram poupados. De repente, percebi como pode um soldado sentir-se solitário na sua trincheira, solidão no meio de muitas outras. Todos também deviam sentir aquele vazio, aquele terrível vazio de estar vivendo um pesadelo. Tudo fica irreal e inconcebível. São pensamentos bem amargos; alguns, se melhor examinados, talvez não tivessem razão de ser, mas parecia-me tudo desculpável. Eu estava vendo, como milhares de outros pracinhas, o mundo através de uma trincheira. E uma trincheira tem mais de amargo do que de heróico. Aliás, a guerra não é heróica. Não é como em livros ou em filmes. Não há bandeiras nem tambores, nem cornetas com toques marciais, nem tão pouco heróis condecorados que voltam para casa e beijam a noiva. Ninguém sente vontade de ser herói e, quando pratica qualquer ato de bravura, fá-lo quase inconscientemente. O que há na guerra é sujeira, lama, frio, fome, cansaço de noites a fio sem dormir, mêdo da morte, sofrimento e monotonia, esta terrível monotonia de todas as guerras. A monotonia de cavar um foxhole e ficar escutando aqueles ruídos surdos, ouvindo aqueles estrondos que não param nunca. A guerra nada tem de heróico. É triste e a trincheira é dos piores lugares da guerra. Fui sacudido dos meus pensamentos pelo Baraúna que me disse: - Descansa, garoto (era como ele sempre me chamava) temos muito que fazer hoje. De fato tinhamos. Já se sentia o rolar dos tanques. Os alemães ainda estavam em Montese, que devia ser tomada a todo custo. O ataque prosseguiria nesse dia, essa é que era a realidade.

Joaquim Xavier da Silveira, 1º R.I.
"Cruzes Brancas - O Diário de um Pracinha"

 


Em luta
Arquivo Diana Oliveira Maciel

"O alemão percebeu que a gente era tropa nova, e fez patrulhas e bombardeou com morteiro para nos testar. Vi uma patrulha alemã, e antes de passar fogo eu perguntei para o tenente se eu podia. Ele disse que não, que ia denunciar nossa posição. De noite começou a cair granada de morteiro, e nós atiramos na direção do alemão, mas sem ver nada. Morreu o Otelo Ribeiro, o José Serafim, que era atirador de morteiro, e eu fui soterrado pelo deslocamento de ar. Fiquei no chão sem respirar, e fui no PC da companhia descansar um pouco. Depois voltei e pedi para passar para o lugar do Serafim, já que eu sabia atirar de morteiro porque eu tinha aprendido no 4º R.I. Foi a minha sorte, porque o camarada que entrou no meu lugar no fuzil metralhadora levou uma rajada no 21 de fevereiro."

Antonio Amaru, 1º R.I.


Grupo de Metralhadoras da FEB - Monte Castelo - Itália
Arquivo Diana Oliveira Maciel

CENAS EMOCIONANTES

Durante a tomada de Monte Castelo o movimento no hospital era intenso. Cena emocionante era a chegada de novos feridos. Os hospitalizados recebiam os companheiros nervosos e curiosos. Choviam as perguntas: onde estavam vocês? Tomaram aquela posição? Perdemos muitos companheiros? Comovida, assistia àquelas cenas com tristeza, levando ao nosso soldado o meu atendimento. No meio daquela azáfama, notei que em uma cama no fundo da enfermaria um doente estava sentado, tristonho. Parecia alheio àquele movimento. Dirigi-me para ele e perguntei: "Como está se sentindo? Precisa de alguma coisa? Saudade de casa, da família?" Ele, cabisbaixo, balançou a cabeça e falou: "É enfermeira, em cada coração uma saudade e em cada corpo uma bala."

ENFERMARIA DOS NEURÓTICOS

Conta um companheiro do 7th Station Hospital que um soldado baixado com perturbações mentais foi encontrado a passear no interior da enfermaria, equilibrando um objeto na cabeça. O objeto era nada mais nada menos do que uma mina que ele desenterrara da praia adjacente ao hospital. Outro fato: um soldado, auxiliar na enfermaria, sacudindo as calças de um doente mental, encontrou, nos bolsos da mesma, qualquer coisa pesada que fazia muito barulho em contato com o solo. Verificou, com surpresa, que eram duas granadas de mão com os pinos de segurança quase saídos. Grande foi o seu susto e dos que estavam presentes.

AMÂNCIO TOFANELLI

Soldado Amâncio Tofanelli, de Campinas, São Paulo. Quando servia como metralhador na linha de frente do Morro Sarassicha, seu batalhão, o 2º do 6º de Infantaria, recebeu ordens de contra-atacar. Cessado o contra-ataque foi encontrado caído sobre uma metralhadora, rodeado de alemães mortos. A turma de primeiros socorros e mais tarde os médicos verificaram que o soldado Tofanelli havia recebido nada menos de 82 ferimentos, da cabeça aos pés. Um correspondente de guerra, que visitava o 7th Station Hospital, encontrou-o semi erguido, lendo o Cruzeiro do Sul, jornal da FEB, e divertindo-se com suas anedotas. Relatou a refrega em que recebeu os ferimentos com visível bom humor, citando repetidas vezes a palavra "tedesco", nome do inimigo que os soldados da FEB adaptaram ao italiano "tedeschi". Ao lhe ser perguntado o que queria mandar dizer aos seus, Tofanelli respondeu numa gargalhada: Diga-lhes que o "tedesco" quis me abraçar, mas não teve tempo.

O PAR DE CHINELOS

Certo dia, entregando brindes que a Cruz Vermelha Americana costumava distribuir aos baixados, dei a um deles um par de chinelos. Ele, rindo, me disse: "Enfermeira, não preciso dos dois pés" e separando um, falou para o companheiro do leito ao seu lado: "Fique com o pé esquerdo que eu fico com o direito". E, ainda rindo, disse-me: "A senhora não pensou que este presente ia servir para dois!" Outro deles perdeu a mão direita. Uma ocasião, estando ao seu lado, ele falou: "Se ao menos eu pudesse escrever uma carta para minha mãe... será que a senhora escreve para mim?" Respondi que sim.

"A Mulher Brasileira na Segunda Guerra Mundial"
Cap. Enf. Olímpia de Araújo Camerino

Um Herói nunca morre!

Simples História de um Homem Simples
As Origens
Força Expedicionária Brasileira
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