FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA


A SAÚDE DA FEB


Atendimento à população local adoecida
Arquivo Diana de Oliveira Maciel

Os norte-americanos, que andam pelos píncaros das cordilheiras; a desmontar os germânicos e expulsá-los, pertencem a já célebre 10ª Divisão de Montanha. Unidade preparada com o máximo cuidado durante dois anos, com intenso treinamento e constituída de rapaziada atlética, sadia e empenhada afundo. Pela primeira vez que vem para o combate e se atira com energia e ânimo esportivo dignos do melhor respeito e acatamento. Imaginemos o esforço e a enorme coragem despendidos pelos nossos patrícios para os acompanhar "pari-passu", e manter intacta a determinação de cumprir com precisão as missões que lhes foram atribuídas. E para nossa honra e satisfação, assim se fez. Esta data, 9-3-1945, caracterizou-se por uma aluvião de amputações traumáticas; oito soldados tiveram os pés arrancados de forma violenta. Um deles apresentava cerca de um quilo de barro negro metido sob a pele da perna e da coxa, penetrando através de larga brecha aberta na panturrilha. Com a explosão de mina, soterrada na lama, o barro foi como que injetado com tal violência que comprimiu a artéria femoral do nosso homem, tornando todo o membro inferior avolumado e frio. Tivemos que rasgar a pele e toda a extensão desta elevação, até a região inguinocrural, afim de retirar este esquisito corpo estranho que causava dores lancinantes por causa da irritação nervosa que provocava. Operação inteiramente singular, não descrita nos tratados de cirurgia. Depois de dissecar os músculos, vasos e nervos da região, lavou-se cuidadosamente com soro fisiológico a fim de evitar a supuração. Horas de trabalho atento e cansativo por ser também inesperado. São outros tantos mutilados, inconformados para o futuro, complexos que a guerra atira ao atrito social na nossa terra.

"Notas de um Expedicionário Médico"
Alípio Correa Netto



Ambulância que transportava os feridos
Arquivo Diana de Oliveira Maciel

NOVIDADES DO BRASIL

Voltando, encontrei a minha Companhia ainda estacionada em Gabba. O front estava calmo, mas pelas estradas da retaguarda, em caminho do front, observei uma febril atividade de preparativos para ofensiva da primavera. Enormes comboios atestavam a proximidade da ação. Esperavam-me inúmeras cartas e recortes de jornais: muitas coisas estavam acontecendo no Brasil. Alguns recortes falavam em eleições, outros faziam ao Presidente Vargas referências pouco elogiosas. Era a primeira vez que nós, soldados da democracia, líamos isso, seria possível? A minha volta formou-se logo uma roda de soldados, ávidos de novidades. Em breve a discussão estava armada. O Jacob Gorender logo se salientou. Durante todo o inverno tive com Jacob Gorender longas discussões. Jacob é um rapaz da Bahia, líder estudantil na boa terra e ferrenho marxista. Dotado de brilhante inteligência e dono de boa cultura. Os argumentos por ele usados eram bem fortes e lógicos e, às vezes, a única coisa que me restava, para enfrentá-lo, era a minha inabalável fé nos regimes democráticos. Havia, porém, uma coisa em que estávamos de pleno acordo: aquela ditadura branca no Brasil tinha que acabar. Não era justo que, enquanto brasileiros derramavam o seu sangue pela democracia, continuasse a existir o DIP, por exemplo. As cartas que vinham do Brasil até nós eram censuradas. Durante muito tempo recebi várias cartas da minha família, cortadas em vários trechos. Que nossas cartas fossem censuradas, era justo, pois podíamos, por qualquer imprudência, fazer revelações perigosas, de ordem militar; mas sentíamos todos que as cartas que vinham não tinham razão de o ser. Mas as queixas não eram só essas, Apesar do "Globo Expedicionário" vir sempre cheio de notícias elogiosas sobre a FEB, sabíamos, não obstante a distância, que a princípio houve certa frieza. Um amigo meu mandou-me uma crônica cinematográfica, onde havia uma observação um tanto dolorosa. O cronista relatava que, num jornal filmado cenas da FEB, a assistência aplaudiu fracamente; em seguida, nas notícias sobre o campeonato sul-americano de futebol, foi um delírio na platéia. O cronista não sabia explicar essa atitude, mas acho que há uma explicação, que foi a que dei a alguns pracinhas que, lendo os recortes de jornal, me perguntavam: - Será que desta vez a coisa muda? Mudaria, sim. O nosso povo estava, havia muitos anos, mergulhado numa imensa letargia, num grande marasmo político. A única manifestação permitida era ainda o futebol, ou então aquela outra, organizada fascistamente, também num estádio esportivo, no dia 1º de Maio de cada ano. O brasileiro ainda não tinha saído do marasmo, mas já começava a se esboçar em toda a linha uma reação contra aquele estado de coisas. O Brasil haveria com certeza de sacudir aquele torpor, e voltar a um regime livre. Para isso estávamos lutando. Esperávamos todos, que, quando estivéssemos em pleno regime democrático. os homens não esquecessem que era essa mais uma dívida que tinham para com os que jazem para sempre em Pistóia. É para esses que nós, que fomos seus camaradas, queremos todos os aplausos, todas as homenagens. Naquele momento, o que desejávamos era voltar ao Brasil com vida, para também aplaudirmos os campeões de futebol, voltarmos aos nossos hábitos comuns e revermos os entes queridos. Tudo isso seria permitido, porque um punhado entre nós fez o supremo sacrifício. A FEB, que antes era um aglomerado de homens em uniforme, usando um "Brasil" no braço, que nas ruas da cidade sempre encontravam algum engraçadinho para perguntar quando embarcava, mostrou que, apesar de fazer a guerra como amador, era capaz de levar de vencida os técnicos da profissão, os prussianos. É claro que no meio de tantos homens devia haver muitas queixas contra tudo, mas nunca houve mágoa. Mágoa haverá no dia em que os homens esquecerem que outros seus semelhantes, centenas deles, jazem num cemitério militar, enquadrados na derradeira disciplina, sob uma fila de cruzes brancas.

"Cruzes Brancas - O Diário de um Pracinha"
Joaquim Xavier da Silveira


Jeep para o transporte dos feridos
Arquivo Antonio Gallery

Inundação de um hospital de sangue

Se a vida do médico é, em todos os tempos, uma vida de sacrifício e privações, em tempo de guerra é ela ainda mais cheia de espinhos, exigindo um grau elevado de desprendimento e amor ao próximo, de dedicação e trabalho. Contingências especiais, inerentes às operações bélicas, muitas vezes obrigam a instalação de formações de tratamento, hospitais de evacuação, etc. em lugares expostos a vários riscos, além dos riscos de guerra propriamente. Foi o que sucedeu com um hospital americano-brasileiro, instalado nas proximidades do rio Arno. O outono de 44 foi particularmente chuvoso, o que acarretou uma enorme enchente, transbordando as águas e invadindo as planícies vizinhas. A inundação atingiu uma grande zona, trazendo graves prejuízos às populações civis, que, já bem sacrificadas pelas calamidades da guerra, sofreu ainda mais os horrores de uma enchente. Nesta zona estava localizado um hospital aliado, com uma seção brasileira, num ponto em que nada fazia prever a chegada das águas. Quando os elementos desencadeiam, entretanto, vão além de qualquer previsão por mais pessimista que ela seja. Foi o que sucedeu. Após um dia de árduo trabalho, sobreveio o grave acontecimento, para cuja narração passamos a citar as palavras de um distinto colega, Cap. Méd. Dr. Osvaldo Luís do Rosário, que integrava uma das equipes cirúrgicas: "Ao terminar o jantar de um dos primeiros dias de novembro, um oficial americano, segundo hábito no "mess", bateu com uma colher na caneca. Um aviso ia ser dado, como foi. O Cel. Wood, do 38th. Evacuation Hospital, convocava para dali a pouco uma reunião de todos os oficiais e enfermeiras. Às dezenove e quinze estavam todos no lugar designado. O Coronel falou à maneira americana, sem fazer gesticulação, por uns vinte minutos, interrompendo-se de vez em quando, para fazer uma pergunta. As vezes suas palavras eram seguidas de risos, de oficiais e enfermeiras, seus patrícios. Os brasileiros não riam, nem o interrompiam. Como não compreendiam o que estava dizendo, faziam conjecturas, sendo que a mais comum era a da mudança do hospital para outro local. Terminado o pequeno discurso, um tenente-coronel ianque se levantou para pedir ao Diretor a tradução do que dissera em português, para que os brasileiros ficassem ao par do assunto. Levantou-se então o Major Ernestino de Oliveira, chefe do grupo brasileiro, fez-nos cientes do que havia: o Arno, o rio de Dante, com as grandes chuvas, enchera muito; represas se tinham rompido, Florença estava alagada, desde a véspera e a enchente, caminhando em direção a Pisa, ameaçava inundar tudo, inclusive o lugar em que nos encontrávamos. Era necessário, em face dos acontecimentos, que arrumássemos nossas bagagens, que tivéssemos à mão nossa "cama-rolo", única cousa que seria permitido levar, e que nos mantivéssemos calmos, porque o serviço de engenharia americano estava alerta, em contínua comunicação com o Cel. Wood e, em caso de perigo, o alarme seria dado pelo alto-falante. Quanto às ordens: os médicos de serviço, chefes de enfermarias, etc., se manteriam em seus postos, até a evacuação total dos feridos e doentes; os de folga ficariam em suas barracas, à espera de ordem de abandono. Todas as ambulâncias e caminhões disponíveis estariam prontos para o que desse e viesse. No fim de sua tradução resumida, o Dr. Ernestino acrescentou que o Cel. Wood não acreditava muito na inundação, que as providências tomadas e previstas eram mais fruto da decantada organização americana, considerada por muitos brasileiros presentes como alguma cousa sobre-humana. Fomos para nossas barracas arrumar a bagagem e colocá-la a salvo de uma problemática inundação, na qual eu não acreditava muito, dado o que havia dito o Cel. Wood, notável cirurgião da "Mayo Clinic", maior organizador do Exército americano, amigo de Roosevelt e de Churchill. Se um homem daqueles não acreditava na enchente, nos desejava boa-noite, a enchente não poderia vir, não seria possível. Uma hora mais ou menos após os acontecimentos narrados, estava eu em minha barraca, já com tudo arrumado, por via das dúvidas, quando me vêm chamar com urgência, à nona enfermaria, "Ward Nineth", como diziam os americanos. Logo ao sair, percebi que a cousa não ia bem. O hospital desobedecia de maneira flagrante ao "black-out" e o movimento era grande, sob gritaria infernal. Os americanos tiravam o que podiam do depósito de mantimentos e de material e medicamentos, do "supply", como chamavam, e carregavam os caminhões. Dirigi-me para a "Ward Nineth". Era uma enfermaria cedida aos brasileiros, cujo número era grande, em virtude de recentes combates, no avanço de nossas posições. Só encontrei o Major Pitts, o tão celebrado neuro-cirurgião. Celebrado pela sua técnica perfeita e pelo seu humor variável. Cumprimentei-o. Secamente respondeu o clássico "good-night" . Estava contrariado com o incidente ou num de seus maus dias. Quando em mau inglês lhe perguntei se poderia tomar contas das papeletas, para que não se perdessem, respondeu-me telegràficamente: "Only of your patients". Recolhi as papeletas e fui indicando aos soldados americanos que traziam padiolas, aqueles que deviam ser transportados deitados ou sentados. Tudo foi executado com rapidez, sem confusões, no ambiente do eterno bom-humor americano. Ao mesmo tempo que uns carregavam os feridos, outros desarmavam as camas, com velocidade que só o treinamento, o amor ao trabalho e a boa saúde podem conseguir. Ficaram os feridos e doentes que não tinham necessidade de transporte em "litter". Passei para o lado da 9ª Enfermaria, que dava para a estrada por onde saiam ou entravam os veículos. Era a orla sagrada de Pitts. Estava completamente vazia: os doentes já tinham partido. Com meus pacientes em fila, fiquei à porta da tenda, esperando condução. Não era possível evacuar todos ao mesmo tempo. Uns tinham de aguardar com paciência. Quando chegou o primeiro caminhão, a água já dava pelos tornozelos. Levou os que pôde. Muitos ficaram. Uns dezesseis. Nesse momento começou a haver certa confusão, um grau de nervosismo, alguma gritaria e a água, impiedosamente, foi subindo. Meus doentes, com a água pelos joelhos, tremiam de frio. Por um milagre, não chovia. O céu, cheio de estrelas, lembrava, de leve, o do nosso Brasil distante. Uma ambulância apareceu; cortando as águas, fazendo onda. Não era para nós. Levava outros doentes, mais graves e algumas "nurses". As últimas, certamente. A maioria havia saído muito antes, antes dos mantimentos e dos doentes. Era, mais uma vez, a manifestação do amor americano pela mulher. E esperamos, esperamos, ao sabor da enchente, que aumentava sempre. Quando a cousa assumiu proporções de tragédia, um oficial americano foi de opinião que fôssemos, médicos e doentes, a pé mesmo. E fomos, pela estrada afora, momentaneamente transformada em rio, para o local onde o hospital deveria ficar - uma Escola de paraquedistas, um dos muitos sonhos de Mussolini, não realizados. Ali nos ajeitamos como foi possível, numa das alas intactas, pois a maior parte do prédio estava destruída pelo bombardeio, ou inacabada. Nossas malas? Nossos objetos? Alguns, mais afortunados, conseguiram trazer bastante. Grande parte ficou lá nas barracas, às escuras, no meio da água. Nos dias que se seguiram voltamos ao local para arrecadar o que encontrássemos. O serviço de salvamento do material prosseguia, auxiliado pelos carros anfíbios, que vieram, em grande número. Vivemos, no meio da grande tragédia que é a guerra, a nossa pequena tragédia. Tudo passou. Dias de sol, cheios de luz e calor, vieram, depois da tempestade. Não tivemos vítimas a lamentar. E, cousa verdadeiramente assombrosa, nenhum doente se agravou com aquele passeio com água pelos queixos. Nenhuma pneumonia, nem mesmo uma gripezinha. A reação foi salutar. O moral se elevou. Tínhamos passado pelo nosso batismo de fogo, que nesse caso, foi batismo de água mesmo, e muita água. Ficaram os exemplos de abnegação, de calma e sangue-frio. Sentimos a impotência humana, para dominar os elementos. Mas também sentimos a energia da reação, na luta contra força superiores, e o prazer do cumprimento do dever, em condições tão excepcionais. Quanto às perdas materiais, essas passaram despercebidas, na riqueza e exuberâncias dos meios e recursos de que dispõem os aliados. Em poucos dias, um novo hospital estava instalado, em substituição àquele, em outro ponto que as necessidades táticas indicaram, mais bem aparelhado, com suas barracas esticadas, com seus aparelhos de raios-X recém-desencaixotados, com seu instrumental cirúrgico brilhante, estreando novos leitos. E a guerra continua. Os noticiários dos jornais talvez nem tenham aludido a esse acontecimento. Numa luta de milhões de homens, em que morrem diariamente milhares, uma simples inundação, em que ninguém se resfriou, pouca importância teve.

"A Epopéia dos Apeninos"
José de Oliveira Ramos



Hospital de Evacuação 38 em Pisa, inundado pelas águas do Rio Arno.
Vê-se as barracas com o símbolo da Cruz Vermelha, quase submersas.
Foto escaneada do livro "Epopéia dos Apeninos" - José de Oliveira Ramos

Acabamos de receber interessante visita; uma dessas testemunhas, cujos sofrimentos, narrados na sua crua realidade, constituem flagrante libelo contra a guerra, mostrando as suas misérias e incompreensões. Era um oficial. Vejamos a sua estória. O capitão deteve-se à porta da barraca, apresentou-se, meio perfilado, meio à vontade, entre o rigor formal do exército brasileiro e a espontaneidade do norte-americano. Com assento tipicamente nortista engrogolou algumas palavras rápidas que terminaram pela expressão - "centro de triagem". Ficamos sabendo que ele servia nessa unidade. Oferecemo-lhe um banquinho de campanha, peça da parca mobília de que dispúnhamos; ao sentar-se pouco diminuiu o seu talhe, pois é, quase todo ele, tronco, os membros inferiores pouco influem na sua altura. Falou coisas banais, repetindo sempre o "sim sinhô" muito nitidamente, como reminiscência da alma escrava que os costumes fazem ainda hoje chegar aos nossos dias, através desta linguagem característica. Mandíbula larga, braquicéfalo, olhos pulados, com ar humilde e algo doce a semelhança da inexpressiva aparência de uma tartaruga. Fala com dificuldade, articula penosamente as palavras e poucas idéias. O assunto esgota-se a todo o momento, extinguiu-se na esterilidade da dialética do capitão, nada o interessa. O seu olhar é vago e, às vezes, como absorto por imagem divisada em horizonte longínquo. No calor da tenda, que recebe o sol a pino, poreja o suor em sua tez trigueira; no seu cachaço tribolado forma-se uma corrente líquida que é enxugada pelos golpes da manga do seu uniforme. O gordo oficial faz desanimar ao pensarmos como tal espécime alcançou o seu posto e ainda ter sido mandado como elemento de elite na tropa expedicionária! "O calor e a poeira da estrada são terríveis, não é Capitão?" O seu olhar retroverteu-se, como a contemplar a própria alma, não tinha brilho, era indiferente, ainda ostentando aquela meiguice estúpida que se nota nas tartarugas. Depois de longa pausa, responde. "Isso é nada, a gente suporta bem; nós temos calor, na nossa terra, e a guerra já se acabou; tudo é fácil de vencer, a distância de 200 quilômetros em caminhão é rápida e o corpo é forte. O pior é um naufrágio a 40 milhas da costa; muito pior é carregar um filho num braço e remar com o outro a noite inteira". "Como foi toda a estória, capitão?" Agora nós olhamos a figura do nosso interlocutor, com simpatia e interesse. Ele ainda sustinha o olhar ao longe, mas já se percebiam algumas chispas a incendiá-lo de quando em vez. "Eu e toda a minha família estávamos a bordo do Bagé, na costa da Bahia. Nós já esperávamos alguma coisa desagradável, permanecemos no tombadilho, que viajávamos em comboio e as seis horas da tarde o nosso comandante recebeu ordem de deixá-lo, como medida de precaução. Era estranho mas a determinação foi reiterada, devia ser obedecida, o comandante, coitado quis salvar o segundo dos meus filhos, tinha que obedecer. Viajávamos sozinhos, no mar largo, a 40 quilômetros da costa da Bahia. As 21 horas, de noite estrelada e calma, ouvimos um estrondo e sentimos terrível abalo; poucos segundos depois o fato repetiu-se, o navio adernou. Procuramos alcançar o tombadilho superior, minha mulher, eu e os cinco filhos. Os movimentos eram atarantados em meio de grande gritaria e choradeira. Cada um procurando abrir o seu próprio caminho aos empurrões, porque era o instinto da salvação que dominava todos os espíritos. A cena devia ser de desespero, mas dela não nos apercebíamos na desordem que se estabeleceu de súbito. O segundo dos meus filhos desgarrou-se do grupo e meteu-se por escada diferente e foi logo envolvido pelo fumo desprendido com a explosão do torpedo e não pode enxergar mais nada. A mãe, aflita, gritava por ele; ele respondia que nada podia ver, nem andar, estava sufocado pelos gases que empestavam o ar. Foi quando o comandante, penalizado por ter travado boas relações de amizade com ele, quis salva-lo e lá ficou também, cego e sufocado pela fumaça da explosão. Coitado, era um homem de grande coração, ele podia ter abandonado o navio e salvar-se, mas... Conseguimos nos meter num bote, poucas remadas além, em mar inquieto, encontramos uma mulher nua, a debater-se, recolhemo-la. Era a minha senhora cujo escaler virara, e só, então, ficamos sabendo que ela não estava conosco ao deixarmos o navio. Refeitos do grande susto, éramos apenas cinco na família em lugar de sete; faltavam os dois filhos mais velhos; jamais os vi. Pouco depois, ainda nas imediações do soçobramento, falou-nos o comandante do sinistro submarino, que apareceu subitamente sob as ondas como um fantasma, figura do ódio e da maldade. Os homens que se dirigiram a nós, indagando pelas características da embarcação eram italianos jovens, robustos, belos como os meus dois filhos desaparecidos. Remamos três dias, senhor major, eu com uma filhinha no braço. Ao fim aproximamo-nos da praia. Era um rochedo que me pareceu branco e luzidio, batido pelo sol, sobre o qual quebravam as ondas. Procurávamos lugar propício ao desembarque, que era a nossa única esperança de salvação; foi quando surgiu a ventania. O vento, aos safanões, impelia-nos sobre as ondas em arrancos loucos. O medo dominava os nossos corações, as crianças choravam e pediam para voltar à terra, minha mulher rezava em voz alta. Um desespero! Em dado momento, como um milagre, lufada mais violenta atirou-nos numa praia de areia branca. Estávamos salvos. Os pescadores nos socorreram. Pudemos matar a sede, a fome e descansar. Tudo isso levei ao conhecimento dos meus chefes militares. O comandante P. mandou abrir inquérito e tudo ficou conhecido: o torpedeamento, afundamento do navio-transporte e o nosso sacrifício. Perdi tudo o que possuía de material e ainda os meus dois filhos mais velhos. É por isso, senhor major, que eu estou aqui na FEB; mas não é por vingança não, apenas porque um dos meus filhos pode muito bem ter sido aprisionado pelos alemães ou italianos naquele sinistro momento. Quem sabe se posso encontrá-lo em algum campo de prisioneiros libertados pelos aliados. Já fui a todos eles, mas a esperança não se perde, não é?" O homem cresceu no nosso conceito. Ali sentado no banquinho tosco, pareceu-nos enorme, gigante no sofrimento, imenso em sua resignação, magnífico na sua força moral, pertinaz no amor paterno. "Para terminar, senhor major, perdi, também, o meu revólver regulamentar, minha carga, e, por causa disso, pago 14 cruzeiros por mês, há já um ano, tal como foi mandado pelo comandante x." "Que comandante?", indagamos. "Não lhe quero declinar o nome, mas posso dizer-lhe que ele é muito cioso dos próprios nacionais." Pobre organização tendo que se avir com homens deste quilate. Um oficial perde os filhos, ninguém o poderia jamais indenizar, e ele é condenado a pagar as prestações da pistola, conforme o despacho honesto do cuidadoso e econômico comandante... Aí está uma história das reações humanas perante a fatalidade dos acontecimentos. O fim da guerra foi para o nosso capitão amarga desilusão. A esperança de encontrar o filho esvaiu-se como uma névoa, restando o grande consolo de rever mais crescidos e alegres os que lhe restavam, quando em breve, tornasse ao seio da família, na Pátria distante.

"Notas de um Expedicionário Médico"
Alípio Correa Netto


Hospital de Evacuação 38 em Pisa, inundado pelas águas do Rio Arno
Foto escaneada do livro "Epopéia dos Apeninos" - José de Oliveira Ramos

 

 

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