FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA


NO FRONT


Artilharia, guarnição de canhão de 105 mm.
Foto escaneada do livro "Cinqüenta Anos Depois da Volta" - Octávio Costa

Rio de Janeiro - 20 de setembro a 17 de outubro

No Rio de Janeiro, os 1º e 11° RI encontravam-se em fase de preparação para o embarque. E o II° RI, com a falta da Companhia que à última hora seguira com o 6º RI, só tinha um mês pela frente para organizar uma nova Companhia de Obuses. Foi então que, para facilitar as coisas, surgiu a feliz idéia de indicar: Oficiais de infantaria; Praças (sargentos, cabos e soldados) da artilharia, que na sua totalidade seriam representados pelos Estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Bahia.  No dia 16 de agosto saiu a relação dos artilheiros que seriam transferidos para o 11° RI. Foi um "Deus nos acuda". Até parecia que haviam sido escolhidos a dedo para serem lançados na frente de combate. Eu estava de fora. Mas como era do meu dever acompanhar o amigo Lenine, um dos escolhidos, fui substituir um sargento casado, com filhos, que achou por bem permanecer na artilharia. E a partir da manhã seguinte, quando cruzamos o portão de entrada do II° RI passamos a ser "destemidos infantes". Assim que nos apresentaram na Companhia, o Capitão Comandante reuniu todos os sargentos e lá veio a primeira recomendação: " Aqui, os senhores não estão na artilharia e seria bom mesmo que já fossem se habituando aos comandos da nossa infantaria". Dali, os sargentos deveriam se apresentar aos pelotões. Eu, como Sargento Auxiliar do 1º , fui conhecer o meu comandante, Tenente Cordeiro França, um carioca do Meyer, que viera transferido de Engenho da Aldeia, do Recife. Éramos dois ilustres desconhecidos, um vindo do norte e outro do sul e, finalmente iríamos nos conhecer na guerra. Já no primeiro encontro, eu tive dele as melhores impressões: homem simples, sensato e muito compreensivo, mostrou-se satisfeito com os homens da artilharia. O tempo era escasso e ele sabia que tinha que contar com os sargentos, como sabia também que nós estávamos ali para ajudá-lo a formar uma Companhia coesa e destra, que correspondesse à confiança do comando. O êxito do 1º Pelotão dependeria, sobretudo, da nossa experiência e capacidade de ação. Decepções, acredito que não houve. Houve, sim, muito trabalho, muito sacrifício, respeito mútuo e acima de tudo, mais da parte dele, muita compreensão. E daí nasceu uma grande amizade que viria a perdurar pelo resto dos nossos dias. O II° RI achava-se ao comando do Coronel Delmiro Pereira de Andrade, um paraibano nascido em 1893, que trouxe o Regimento de São João Del Rei para ficar aquartelado em barracões improvisados no Morro do Capistrano, no Rio, onde se preparava num ritmo intensivo, moldado ao sistema de organização americano. Enquanto o 1º Escalão se aprontava para entrar em combate, os 1º e 11° RI aguardavam a vinda dos navios que os levariam para a Itália. E agora era chegada a nossa vez. Para fugir ao embarque, uns simularam doenças contagiosas, ludibriando os médicos, e outros, como desertores, deram no pé. Desertores, aos quais faltou moral, vergonha, dignidade e amor à Pátria, houve muitos. O tempo era escasso e tudo tinha de ser feito às pressas: instrução, vacinas, distribuição de uniformes, etc. Ao passo em que os uniformes dos oficiais eram confeccionados sob medida, os dos pracinhas, de péssima confecção, eram motivo de vexame para os homens da FEB, fazendo-os parecerem a um verdadeiro espantalho. E cada um de nós ainda recebeu dois sacos (A e B) para o transporte dos nossos pertences pessoais. O saco "B", destinado a guardar objetos e peças de uso não imediato, ficava na retaguarda e o saco "A", contendo uniformes, cuecas, meias, agulhas, botões, pentes, etc., tudo enfim que fosse de primeira necessidade, acompanhava o pracinha na frente de combate. Daí o apelido pejorativo de saco "B" àqueles que nunca estiveram na linha de frente. Os sargentos da linha de fogo, vindos do 3º RAM, eram os que mais vinham auxiliando o comando na formação dos homens da Companhia. No entanto, ainda estávamos habituados com a peculiaridade da "poderosa" e demorávamos a nos ajustar, como era natural, aos comandos usados pela infantaria. Tanto assim que, durante as instruções, ouvia-se com freqüência os sargentos: - Bateria, sentido! Bateria, descansar! Bateria, fogo! Com isso, o Capitão revoltava-se e tornava a insistir: - Estamos na infantaria e não na artilharia, seus..., gritava ele. Os sargentos, constrangidos, logo modificavam os comandos: - Última forma! Companhia, sentido! Companhia, descansar! etc... Mas o que mais surpreendia os infantes era ao término das sessões de educação física da Companhia de Obuses, quando a canção da artilharia ecoava pelos quatro cantos do morro do Capistrano. Ai então o Capitão bufava, mas notava-se que aos poucos ia aceitando aquela situação.

San Rossore - 18 de outubro a 22 de novembro

A Quinta Real de San Rossore, que fora um antigo parque de caça do Rei Vitor Emanuele, situava-se nos arredores de Pisa, a poucos quilômetros da orla marítima. Ali, numa área que se estendia à margem de uma estrada coberta por um bosque, onde já.dispunha de todos os recursos, como água, chuveiros e latrinas, é que os 11 000 homens começaram a levantar as barracas para formar o grande acampamento. Logo à nossa chegada, fomos incorporados ao V Exército Americano, ao comando do General Mark W. Clark, que já contava com tropas canadenses, marroquinas, sul-africanas, americanas, inglesas, polonesas, australianas, neo-zelandesas e até mesmo os misteriosos hindus, com seus turbantes e barbudos. Aqueles que sempre foram chamados de praças, agora recebiam o diminutivo de "pracinhas". Os mestre-cucas da Companhia, depois de um pequeno estágio com os americanos, passaram a cozinhar em fogões de campanha abastecidos a gasolina. Começamos, finalmente, a comer pratos preparados pelos nossos cozinheiros, embora feitos na base dos enlatados de procedência americana. As cenas de miséria que se deparavam em redor do acampamento cortavam o coração do brasileiro. Eram crianças, moços e velhos cercando o local, esperando pela distribuição da sobra do rancho. Aquele povo sofrido e humilhado, que mais vivia em busca de alimentos, não necessitava pedir: o brasileiro, penalizado, lhe oferecia. Americanos e ingleses admiravam-se do gesto humanitário dos brasileiros. A degradação moral, decorrente da situação, era de estarrecer. Nas ruas, homens já idosos viviam de expedientes, dos mais inocentes aos menos recomendáveis. O estado, enfim, de miséria da população era contristador. Não fazia muito que a cidade de Pisa havia sofrido um dos mais terríveis bombardeios. De cima da torre inclinada podia-se perfeitamente observar os escombros a que ficou reduzida a cidade de Galileu. Contíguo a San Rossore havia uma área semeada de minas deixadas pelos alemães. E as tabuletas com os dizeres "off-limits", delimitando a tal área, despertavam a curiosidade dos pracinhas. Mas os Soldados Erich Gegenbauer, Eleutério Ronchi e mais dois outros, que também eram da Companhia, decidiram procurar chifre em cabeça de cavalo. Contrariando as recomendações do comando, penetraram uns seis quilômetros pelo terreno proibido. E ao encontrarem um pequeno avião inglês abatido pelos alemães, o Eleutério, metido a besta, resolveu tirar uma metralhadora colocada na asa do aparelho. Mexe daqui e força dali, a. arma dispara e vários projéteis vão alojar-se nas suas pernas. Depois disso, teve de ser carregado até o acampamento e, como quem é burro pede a Deus que o leve e ao diabo que o carregue, foi direto para um hospital, não viu mais guerra e desapareceu do mapa. Não demorou uma semana e a Companhia de Obuses foi equipada com armamento americano, um arsenal do mais variado material de guerra: obuses "Howitzer" calibre 105 mm-M/3, bazucas, metralhadoras ponto 50, Garand, carabinas e fuzis Springfield. Cada um dos três pelotões recebeu um jipe, duas viaturas de uma e meia tonelada para tracionar os obuses e uma viatura de duas toneladas, com reboque, para o transporte da munição e dos sacos " A" e "B". Por circunstâncias especiais do momento, como era natural para todas as tropas antes de seguirem em definitivo para a linha de frente, os tenentes comandantes de pelotões e seus respectivos auxiliares deviam fazer um estágio de dez dias no "front", com a finalidade de oferecer maior confiança aos homens do Regimento na ocasião do "batismo de fogo". Como na primeira leva, deveriam seguir os sargentos, assim foi que, entre os dias 20 e 30 de outubro, eu, Lenine e Sebastião, com os demais sargentos auxiliares do 11º RI, estivemos estagiando com o 6º RI na região de Barga. E lá na Companhia de Obuses do Capitão Domingos Ventura Pinto Júnior, onde fomos conhecer o desempenho do material americano, tivemos como instrutor o Sargento Auxiliar do 1º Pelotão, Antonio Olimpio Duarte, um mineiro de Juiz de Fora. Restava, agora, adestrar o pessoal na utilização do armamento e equipamento recebidos. Com maior ritmo de trabalho, reiniciaram as instruções dos homens da linha de fogo, que, no tempo o menor possível, deviam se adaptar à mudança do material bélico, da munição e à tabela de tiro americana. Nesse período, o Tenente França se trancava na sua barraca e passava horas e horas devorando a complexidade da técnica de tiro de artilharia. Ele era daqueles que não se afobava e, mesmo nas situações mais difíceis, fazia tudo com a maior calma desse mundo. No desempenho de uma missão importante, não deixava de pedir a minha opinião, dizendo na sua filosofia: "Uma cabeça pensa bem, mas duas pensam melhor". Sempre agiu assim e sempre deu certo. O que, entretanto, mais nos intrigava e que até hoje ninguém chegou a saber, era o porque da sua japona estar sempre abotoada em desalinho. Coisa que até mesmo chegamos a pensar fosse uma superstição. Com um mês de instrução, os homens da linha de fogo apenas aprimoravam os conhecimentos adquiridos. Mas as marchas a pé continuavam acontecendo. E para os "bois-de-bota", disfarçados em "pés-de-poeira", era a pior coisa desse mundo. Depois dessas memoráveis jornadas, o Capitão Comandante mandou distribuir "borzeguins" novos para o pessoal substituir os então em uso, que estavam imprestáveis. Mas ainda havia uma marcha a fazer. E na noite anterior, quando estávamos com os pés em estado de miséria, ordenou aos sargentos auxiliares para que todos os praças (sargentos, cabos e soldados) desarmassem as barracas pela manhã e a equipassem as mochilas. Por ser contrária ao bom-senso, a ordem chegou aos sargentos com desagrado. Nós, afinal, estávamos ali para cumpri-la, mas ameaçava chuva e não seria justo que, durante a jornada, os nossos pertences pessoais permanecessem expostos ao tempo. O Capitão, nós já o conhecíamos, era inflexível e não aceitava os nossos argumentos. E nessa mesma noite, nós sargentos auxiliares, como responsáveis diretos, fizemos chegar a ele a decisão de que não desarmaríamos as barracas porque estava em risco a saúde da tropa. O Capitão, é claro, surpreendeu-se com a nossa atitude, mas possivelmente compreendeu-nos, porque na manhã brusca do dia seguinte, vendo que as barracas não haviam sido desarmadas, esperou pelo café e depois, como habitualmente fazia, usou do apito para reunir a Companhia em forma e iniciar a marcha prevista. Isto, todavia, em nada influiu na disciplina da Companhia de Obuses, que era das melhores, e nem no nosso bom relacionamento com os oficiais. No dia 21 de novembro, o 11º RI transfere-se para Filletole. Milhares de homens levantaram acampamento de San Rossore, onde não ficou uma barraca armada.

Filletole - 22 de novembro a 28 de novembro

No mesmo dia chegamos em Filletole, um vilarejo situado às margens do rio Serchio, entre Pisa e Luca, por onde o 1º RI já havia passado. Ali, mais próximo do front, seria a fase final dos exercícios de adaptação e dos preparativos para a entrada em combate. Assim que os americanos fracassaram nas investidas dos dias 24 e 25 ao Castello, o Comandante do IV Corpo de Exército decidiu deixar à 1ª DIE, a responsabilidade de um  terceiro ataque e agora seriam lançados o I/1º RI, o III/6º RI e III/11º RI. Não fazia uma semana que estávamos em instrução, o 11º RI começa a se deslocar para a frente de combate, mandando no dia 28, como vanguarda do Regimento, o III Batalhão e a Companhia de Obuses ocuparem posições nessa mesma noite para participarem do ataque que seria levado a efeito na manhã do dia seguinte. Saindo de Filletole, passamos por Pistóia, ganhamos a estrada de Bologna, cruzamos pelas alturas dos Apeninos, mais adiante passamos com dificuldade pela ponte Della Venturina e ao final da tarde alcançamos a localidade de Lustrola, onde a tropa devia concentrar-se. Enquanto os oficiais, menos o Tenente Mattos, saíram para fazer o reconhecimento do itinerário e das posições que devíamos ocupar durante a noite, serviram aos elementos da Companhia uma ligeira refeição fria, ração americana de reserva tipo "C". Esta constava de feijão branco, carne, legumes, etc., variando o conteúdo de cada lata, acompanhado de bolachas, café, chocolate, limonada, quatro cigarros, fósforos, balas, açúcar e até mesmo papel higiênico. O que se destinava a beber, como café e refresco, vinha concentrado para ser dissolvido n'água. Lá pelas 21 horas a Companhia reinicia a marcha, rumando pelo itinerário que levava às posições de combate. Com o Capitão à frente e os três pelotões bem distanciados um do outro, iniciamos a passagem pela ponte de Silla, que ficava sob as vistas dos observatórios alemães instalados no cume do Monte Castello. A passagem por ali só podia ser feita à noite e assim mesmo sujeita a bombardeio do inimigo. Como a tal ponte era muito bombardeada e já fora diversas vezes reconstruída, agora estava protegida por uma rede de aço e encoberta permanentemente por uma cortina de fumaça artificial. Dali já se podia ouvir o estrondo das granadas e o pipoquear das metralhadoras, com o que todos já deviam ir se habituando. Depois de passarmos por Silla, mais adiante deixamos a estrada asfaltada, saindo pela esquerda na direção de Premarola. Com muita dificuldade, as nossas viaturas arrastavam os obuses pelos caminhos escarpados e lamacentos que levavam as posições nas alturas de Paroncella, de onde atiraríamos sobre o Castello. Ora uma viatura ficava atolada no lamaçal e era necessário retirá-la a braços, ora uma outra caía num buraco e ficava para ser retirada no dia seguinte. No caminho, as granadas de artilharia, que iam e que vinham, já sibilavam sobre as nossas cabeças. E o matraquear das metralhadoras, agora mais próximo, se misturava com os tiros de morteiros. Era o "batismo de fogo" da Companhia de Obuses.

Paroncella - 29 de novembro a 23 de dezembro

As nossas posições ficavam numa região íngreme, de difícil acesso, a uns dois quilômetros da estrada asfaltada. Os 1º e 3º Pelotões, menos o 2º do Tenente Mattos, chegaram por volta da uma hora da manhã do dia 29. Enquanto os homens da linha de fogo se dedicavam aos trabalhos de preparação dos terraplanos das peças, dos nichos de munição, da camuflagem e da defesa aproximada, os homens das transmissões, Sargento Benjamim, Cabos João dos Santos e Miguel Bay, se encarregavam da construção da linha telefônica para o observatório e posto de comando do Regimento. Até aí tudo corria normalmente, apesar da falta do 2º Pelotão que, por ter-se perdido durante a noite, só apareceu ao clarear do dia, quando a linha de fogo já estava pronta e ajustada para apoiar o ataque. O Capitão Leandro, é claro, aborreceu-se e teve de desabafar. Mas, afinal, tudo se normalizou na Companhia. Chovia bastante e o III/11º RI só atingiu a base de partida às 4 horas da manhã, depois de sete horas de marcha forçada durante a madrugada. E tudo era extremamente adverso: não teve um período de adaptação na linha de frente, mal chegara de Filletole, estava praticamente sem dormir, era o seu "batismo de fogo" e ainda por cima é lançado para conquistar Monte Castello, o mais difícil objetivo naquela região. Toda a Divisão Brasileira já estava operando no vale do Reno, ao longo da estrada que liga Pistóia a Bologna. Disposta nossa tropa pelas encostas das elevações que dominavam totalmente suas posições, olhávamos o inimigo debaixo para cima. Nossa linha de comunicações era, em grande parte, paralela à frente de combate. Nada podia escapar à observação alemã. O conjunto dos Apeninos era tal que tínhamos posições só acessíveis por estradas normalmente ao alcance das armas automáticas dos adversários. E todas, a começar pelo PC do General Mascarenhas, eram sistematicamente batidas pela artilharia inimiga. O ataque, dessa vez, estaria ao comando brasileiro do General Euclydes Zenóbio da Costa. Novos insucessos, porém, estariam reservados na conquista do famigerado morro. Às 8 horas da manhã, quando uma chuva fina e contínua cobria toda a frente, é desencadeado o ataque, com o 1º/1º RI atuando na linha de Guanella, o III/11º RI na direção de Abetaia e o III/6º RI como reserva. Para facilitar o avanço da nossa tropa, as unidades de artilharia castigaram a crista do morro por mais de 40 minutos. A reação do inimigo, todavia, não tardou. Esperou pelo ataque e depois reagiu violentamente, dificultando a nossa infantaria manter-se no terreno. O Soldado Joaquim Afonso dos Santos, natural do Estado do Paraná, pertencia ao Destacamento de Saúde do 11º RI. "No dia 29, o III/11º RI atacava o Castello, e o Soldado Afonso, no exercício de sua nobre função de padioleiro, socorria os feridos, sendo por sua vez atingido, às 9h30min da manhã. Nem por isso esmoreceu. Mesmo ferido, trabalhou ainda até às 22h30min. atendendo a todos quantos jaziam em campo. É um exemplo valioso de tenacidade, de noção perfeita do cumprimento do dever e da nobreza da sua missão."  No fim da tarde, as tropas atacantes retrocederam à base de partida. Com muitas baixas, falhara o terceiro ataque para a conquista de Monte Castello. Seis homens do III/11º RI tombaram em Bombiana. Entre eles estava o Soldado Hercilio Gonçalves, um catarinense de Indaial. O III/11º RI continuava na frente. A 29 pela manhã, o I/11º RI, ao comando do Major Jacy Guimarães, transfere-se de Filletole para Granaglione. E o II/11º RI, ao comando do Major Orlando Gomes Ramagem, desloca-se para Lustrola. Na manhã do dia 2 de dezembro, a Companhia de Obuses atirou 94 granadas sobre as casas ocupadas pelos alemães na região de Fornello, incendiando uma delas. Não parava de chover. Chovia dia e noite e os caminhos ficavam intransitáveis. A água da chuva, que corria pelo terreno íngreme, passava pelo interior das barracas, levando tudo para frente. Para amenizar esta terrível situação, o Capitão transferiu os homens da linha de fogo para um galpão existente ao lado das posições, enquanto uma parte dos sargentos ocupou um dos cômodos da casa de um camponês. E na noite desse mesmo dia, quando o Batalhão do Major Jacy entra em linha para substituir o I/11º RI na frente de Monte Castello, o pracinha mete o saco "A" nas costas, despede-se do saco "B" e se manda para a linha de frente. A inexperiência do I/11º RI, unida ao "batismo de fogo", chamou a atenção dos alemães, já bastante experientes com suas artimanhas de guerra, que valeram-se desses fatores para recepcionar os elementos recém-chegados. Enquanto o Batalhão do Major Jacy procurava ajustar-se no terreno, os alemães lançam uma patrulha, numa provocação visível, para que os nossos homens denunciem as posições e logo em seguida arremessam sobre a nossa tropa um foguete luminoso, outro e mais outro, clareando toda a frente, até que as nossas linhas ficam à mostra, facilitando um ataque do inimigo. De repente, uma rajada de metralhadora ecoa no espaço e daí então começa o inferno. Para os nossos pracinhas, que enfrentavam o "batismo de fogo", tudo era surpresa: os tiros de morteiros que estouravam ao lado das posições, o sibilar dos tiros de fuzis, os "very-lights" clareando toda a frente e ainda o frio cortante. Só depois que o I Grupo de Artilharia e a Companhia de Obuses do 11º RI abriram um fogo de barragem na frente do Batalhão é que voltou a reinar a calma, mas não foi por muito tempo. Subitamente voltam duas patrulhas inimigas pela frente da 1ª Companhia, correm para as nossas linhas, descarregam as suas "Lourdinhas" e depois desaparecem. Enquanto a nossa tropa procurava organizar-se para se manter nas posições, os alemães esperam pela madrugada, rompem a frente do Batalhão, transpõem as nossas linhas e dessa vez chegam a atacar Guanella pela retaguarda, provocando o pânico naquela fração da nossa tropa. "Nessa ocasião, o Soldado Carlos Longui, um catarinense de Itajaí, chegou a ser aprisionado por dois alemães que se infiltraram pela frente da 1ª Companhia. Reagindo à prisão, matou ambos e, na luta, deixou o seu sabre cravado na barriga de um deles. Mesmo ferido na refrega, conseguiu fugir e ainda foi reunir-se aos seus companheiros." Para agravar ainda mais a situação, as nossas linhas telefônicas romperam-se com os tiros de artilharia e dos morteiros. Pela falta de ligação entre as subunidades e o Posto de Comando do Major Jacy, generalizou-se a confusão. O ataque de surpresa levou a 1ª Companhia a abandonar precipitadamente as suas posições e a ela também juntou-se uma parte da 2ª. "A 4ª Companhia do 6º RI estava com suas posições na região de Cá di Berto e à direita do Pelotão do Tenente Pérsio Ferreira, um paranaense de Palmas, travou violentíssimo tiroteio que resultou no retraimento dos elementos que ocupavam aquela posição, deixando uma grande brecha. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o Tenente Pérsio organizou rapidamente um Grupo de Combate reforçado e, pessoalmente, o conduziu à referida posição, sob bombardeio do inimigo, cobrindo dessa forma o flanco exposto e tirando a possibilidade do inimigo infiltrar-se pela referida brecha." A essa altura, a Companhia de Obuses voltou a despejar as suas granadas, procurando arrefecer o ímpeto do inimigo. Para quem viveu o drama, Guanella era um inferno que não convidava ninguém a permanecer lá. Quando a situação era das mais difíceis, o Major Jacy mandou o Soldado Berberino e outros da CC1 levarem cunhetes com granadas de mão para reforçar as posições da 1ª Companhia. Mas, como disse o Berberino depois que deu conta do recado, de nada adiantou, porque na hora da confusão, grande parte da 1ª já tinha se mandado e o Comandante quando foi encontrado, estava sozinho, sentado num dos cantos do porão de uma casa. "O Tenente Alfredo Bertoldo Klass, paranaense de Palmeira, era o Subcomandante da 1ª Companhia. Na tentativa de evitar que se transformasse em pânico a confusão que se iniciava na linha de frente, dirigiu-se pessoalmente ao 3º Pelotão, cujo 2º Sargento Auxiliar Sebastião da Costa Chaves havia tombado morto, e no caminho encontrou parte da Companhia que se retirava. Manteve sob o seu comando os elementos que conseguiu reunir e, a despeito do intenso bombardeio inimigo, mais tarde, agora no comando da Companhia, fez ocupar novas posições, revelando assim, bravura e espírito de sacrifício no cumprimento do dever." Aqueles que não retraíram, vencendo o medo, a lama e a superioridade do inimigo, procuraram a todo custo manter as suas posições. Não só foi o caso do Pelotão do Tenente Ary Rauen, da 2ª Companhia, mas também da CPPI/11º RI, ao comando do Capitão Thorio Benedro de Souza Lima, paranaense de Curitiba, que debaixo de fogo inimigo, mesmo quando o bombardeio era mais intenso, manteve as suas posições defensivamente em Cá de Toschi, até que chegassem os elementos de apoio do 6º RI, que só a substituiu às 10 horas do dia 3. Vejamos, agora, o que se passou na Companhia de Obuses do 11º RI, onde reinava a calma até um pouco antes da meia-noite. Assim que os alemães forçaram pela frente da 1ª Companhia, o Comandante do I/11º RI, Major Jacy, liga para Companhia de Obuses, pedindo apoio de fogo. O telefone toca com insistência e quem atende é o Capitão Leandro, enquanto os demais oficiais, possivelmente como todos nós, já se achavam debaixo dos cobertores. A forma, entretanto, que o Major Jacy pediu o apoio, como era natural naquela emergência, fez com que o Capitão Leandro saísse correndo na direção do galpão onde dormiam os pracinhas e aos gritos acordasse os homens da linha de fogo, ordenando que guarnecessem as peças e se preparassem para atirar, porque os alemães haviam investido sobre as linhas do I Batalhão e muita gente nossa estava morrendo na frente. Foi o que bastou para que os homens da linha de fogo, numa correria, ocupassem as suas posições. Antes, porém, o Capitão já havia ordenado ao Tenente Mattos para seguir ao observatório e ligar-se com o Major Jacy. Como ele se mostrasse adoentado, o Tenente Aloysio se apresenta voluntariamente para a missão, faz-se acompanhar do Soldado Fernando Borba Guerreiro, um baiano de Maraguajipe, e vai ao encontro dos elementos mais avançados do Batalhão. O Ten. Aloysio, muito hábil, seguro e preciso na condução dos tiros, inteira-se da situação e começa a despejar as granadas da Companhia de Obuses sobre C. Vitelline, o ponto forte do inimigo. Na tentativa de impedir o avanço do inimigo, que forçava pela frente da 1ª Companhia, atiramos 312 granadas. E o ambiente no Batalhão, que parecia haver melhorado, voltou a ficar tumultuado. Por volta das duas horas da manhã veio um novo pedido de tiro, mas havia esgotado a nossa munição e às quatro horas, quando a linha de fogo é remuniciada, a linha telefônica para o observatório estava interrompida. Enquanto aguardávamos o restabelecimento das comunicações, os Cabos Fernando Pereira da Silva, Mário Bittencourt e Bruno Sanches instalaram as metralhadoras "ponto 50" na frente e nos flancos das nossas posições. Tamanho era o movimento na linha de frente que ninguém sabia ao certo por onde o alemão avançava. E foi por essa hora que os elementos do 1/11º RI, em meio a uma confusão dos diabos, despencaram morro abaixo, descendo pelos caminhos que levavam a estrada 64. O dia já estava clareando e ainda havia gente cruzando desordenadamente pelas nossas posições. E quando caíram alguns tiros de artilharia nas imediações da nossa linha de fogo, a tensão era tal que um soldado saiu correndo e, invertendo as coisas, se meteu de cabeça para dentro do primeiro "foxhole" que encontrou pela frente, ficando com as pernas e o traseiro do lado de fora. Para livrá-lo daquela deprimente situação foi necessário usar o processo que se aplica em tatu... Apreensivos com o desenrolar dos acontecimentos, cada homem da Companhia empunhava o seu armamento individual. A "paura" chegou a tal ponto que, depois disso, o Sargento Carlito de Oliveira Nery, um baiano de Itabuna que também ocupava a casa do italiano, não deixou de dormir com duas granadas de mão debaixo do travesseiro. Graças à intervenção do III/11º RI e sobretudo do II/6º RI, que asseguraram aquele setor, foi possível repelir o ataque dos alemães. Fora mais um revés sofrido. Muitos como o Sargento Sebastião da Costa Chaves, Soldados Eugênio Alves da Silva e Nelson Alves da Fonseca, que procuraram resistir nas posições, tombaram no cumprimento do dever. Pelo resto do dia a frente de Guanella manteve-se paralisada. Após esse lamentável episódio, o Batalhão do Major Jacy é substituído pelo II/11º RI. Contudo, o ânimo dos homens do I/11º RI não se abateu pela adversidade. Muito pelo contrário, serviu de ensinamento. E mais tarde, esse mesmo Batalhão haveria de encher-se de glórias. " Afinal, a guerra é uma longa experiência, onde se aprende mais com a experiência do inimigo." Alguns dias depois, a 7 de dezembro de 1944, o "Gen. Meigs" chegava a Nápoles com o 4º Escalão de embarque, levando 4 691 homens do Depósito do Pessoal da FEB, que se destinavam a recompletar as baixas das unidades de linha de frente. No 4º Escalão estava o Sargento Lauro Correa Regnier, um parnanguara ferido em combate na revolução de 32, que, depois de ser licenciado, casou com dona Ruthe e foi lidar com fazenda de gado no Estado de Mato Grosso. Em Campo Grande, onde chegou a ser chamado de "pistoleiro", andava sempre com um revólver 38 pendurado na cinta. E não levava como enfeite porque das vezes que usou, e não foram poucas, provou isso. Depois, é claro, acabou prestando contas à justiça. Com a criação da FEB, o Regnier foi um dos primeiros a se apresentar como voluntário, em Campo Grande. Mas esse seu gesto patriótico, que até mereceu elogios pela imprensa, não facilitara em nada a sua ida para a Itália, porque, como disse, já foi difícil chegar ao Rio, onde ficou três dias se virando, e só na última hora, com a ajuda de um pistolão, e assim mesmo para substituir um desertor, é que conseguiram empurrá-lo para dentro de "Gen.Meigs". Com a aproximação do inverno, tão rigoroso naquela região, o Gen. Crittenberger, Comandante do IV Corpo, determinou à 1ª DIE uma nova investida sobre o Monte Castello. Na noite do dia 11 de dezembro, véspera do ataque, um pelotão da 4ª Companhia do 11º RI, ao comando do Tenente Mário Montanha Teixeira, um paranaense de Jaguariaíva, saiu de Guanella em missão de reconhecimento às posições alemãs na encosta de Monte Castello. E ao transpor C. Vitelline, onde foi enquadrado por um bombardeio de morteiros do inimigo, o Sargento Miguel de Souza Filho, natural do Acre, tombou morto e um outro ficou ferido. Apesar das baixas sofridas, o pelotão ainda prosseguiu em frente e ao alcançar o objetivo, quando os cinco homens mais avançados se preparavam para lançar granadas de mão sobre uma casamata inimiga, os alemães voltaram a bombardear com morteiros e o arrebentamento de uma granada ocasionou a morte do Soldado Cosme Henrique dos Santos, um baiano de Entre Rios, ferimentos no Sargento Auxiliar Vitor José Doca e no mensageiro Affes Cassar. Como também tivesse sofrido ferimentos e não pôde prosseguir na missão, o Tenente Montanha ordenou ao Sargento Doca que reconduzisse o restante do pelotão às posições e permaneceu no local, à espera de ajuda, em companhia do Soldado Affes Cassar, que se achava gravemente ferido, e do Soldado João Galdino da Silva, que saíra ileso. Mas tardava a vinda do socorro e ordenou ao Galdino que também retirasse. Este, porém, negando-se a se afastar dali, ainda quis transportá-lo para a retaguarda, com o que o Tenente não concordou em sair da "terra de ninguém", preferindo ficar ao lado do companheiro que se esvaía em sangue. Com o adiantado da hora e já sem esperanças do auxílio que nunca chegava, aí então é que resolveu deixar o local. Mesmo com uma das pernas fraturadas, tendo que enfrentar o frio, a chuva e a lama, saiu arrastando o seu mensageiro pelo terreno acidentado. E um pouco antes de alcançar Guanella, quando ainda impunha animo ao companheiro já quase desfalecido, foram socorridos por uma patrulha comandada pelo Sargento Alceu Baracho, que pela terceira vez havia saído em busca dos desaparecidos. Monte Castello continuava a desafiar os brasileiros. E fazia-se necessário conquistar aquele sorvedouro de vidas, pois que só assim aliviaria a ameaça que permanecia sobre a estrada 64. Era o mais fundamental. Chegara o dia 12 de dezembro, que para a FEB seria um dos dias mais negros na Campanha da Itália, e com ele a nova tentativa de conquistar o famigerado morro. Ainda sob as ordens do General Zenóbio da Costa são lançados três Batalhões em Escalão de Ataque: III/1º RI, ao comando do Major Franklin Rodrigues de Morais, à esquerda; II/1º RI (Major Sizeno Sarmento), ao centro; I/11º RI (Major Jacy Guimarães), à direita, e o III/11º RI (Major Cândido Alves da Silva), como reserva. Para garantir a surpresa, não houve preparação da artilharia. E às 6 horas da manhã, antes do horário previsto, a artilharia americana abriu fogo, quebrando o sigilo da operação. A Companhia de Obuses dos 1º e 11º RI, com as unidades de artilharia que também apoiavam ao ataque, bombardearam impiedosamente a fortaleza alemã desde às 06h30min até ao meio-dia. Monte Castello desapareceu na poeira das granadas. Com o afastamento do Capitão Hugo de Sá Campello Filho, ferido em acidente e evacuado para o Brasil, a Companhia de Obuses do 1º RI achava-se agora ao comando do Capitão Antonio Carlos de Andrada Serpa, um dos mais brilhantes artilheiros da FEB, de uma personalidade marcante, muito liberal, que se dedicava de corpo e alma, principalmente de alma, à vida dos homens da Companhia. Eu, particularmente, convivi o bastante com o Capitão Serpa, para conhecê-lo como soldado, como chefe e, sobretudo, como uma das forças mais vivas de nacionalidade. O Sargento Barnabé Viana de Oliveira, um paraibano da Companhia de Obuses do 1º RI e o Soldado Benedito de Oliveira Mello, um dos seus mais eficientes telefonistas, estão aí para confirmar. Mas vamos ao ataque. Chovera muito durante a noite e uma neblina forte, cobrindo toda a frente, dificultava a regulação dos tiros de artilharia. Mesmo assim, as unidades atacantes progrediam sobre o terreno lamacento. Agarrando-se pelas encostas, procuravam alcançar os pontos estratégicos para depois então galgar o cume do morro. Os alemães, bem armados e protegidos pela altura das suas posições muito bem fortificadas, não entregavam o Monte Castello. O Sargento Manoel Nunes da Silva, um goiano nascido em Morrinhos, pertencia à 4ª Companhia do 1º RI. No ataque do dia 12, vários homens do seu Grupo de Combate foram feridos quando o Pelotão do Tenente Gallotti avançava pelo flanco do Castello. O Sargento Nunes não se abalou. Como possuía uma coragem extraordinária e amor próprio, assenhoreou-se da situação, orientou os demais homens para retirarem com os feridos menos graves, enquanto que ele, apesar da sua baixa estatura, conduziu nas costas o mais gravemente ferido, com quase o dobro do seu peso e tamanho, que necessitava ser atendido a tempo na retaguarda. Passando por um terreno descampado, os alemães atiraram de morteiros. O Sargento Nunes ainda acelerou os passos, querendo alcançar um abrigo, mas as granadas voltaram a cair. Aí, então, ambos deitaram-se no solo, fizeram-se de mortos e ficaram aguardando o escurecer. Já era tarde e os caminhos a percorrer, sobre o terreno lamacento e acidentado, eram difíceis. Finalmente veio a noite e com ela uma neblina forte cobria aquele setor, facilitando o seu retorno. Por volta das 22 horas, quando ainda não se sabia dos seus destinos, o baixinho Nunes, com o soldado grandalhão nas costas, alcançou as suas posições em Premarola. Crioulo bom esse Nunes. Tão bom, mesmo, que ainda não pagou o cabrito que estava me devendo. Durante o ataque, a Companhia de Obuses atirou 468 granadas. O Sargento Zózimo Elias da Rocha, um matogrossense com aparência de índio, impulsionava os seus auxiliares, Soldados Zawadski, Juvenal e Astrogildo, para remuniciar a linha de fogo. Já ao entardecer e sem alcançar as metas desejadas pelo IV Corpo, as unidades atacantes retrocedem à base de partida. E o quarto ataque também fracassou. À noite, o Soldado Joaquim Roque da Costa, motorista do 1º Batalhão de Saúde, saiu com uma ambulância para buscar os feridos que se encontravam em Guanella. Na volta, quando trafegava pelo trecho Gaggio Montano-Silla, a ambulância tombou numa das curvas. E só com muita sorte não caiu num abismo. Como o inverno agravara-se depois do malogrado ataque do dia 12 de dezembro, a nossa tropa passou à defensiva. Eram somente movimentos de patrulhas na "terra de ninguém", com as mais penosas tarefas impostas aos nossos pracinhas que a todo momento expunham suas vidas ao inimigo quase sempre atocaiado de emboscada. E o sucesso dessas patrulhas, agora, iria depender do bom relacionamento entre o Comandante e os demais homens do pelotão. Comandar não é só mostrar-se o mais forte e fazer com que os subordinados cumpram as ordens. Comandar é saber compreender os subordinados como seres humanos, respeitá-los como tais, inspirando-lhes confiança e amizade, para que, na hora da "onça beber água", possa contar com eles. Em combate, cada um está entregue ao seu próprio destino. A teoria agora, dava lugar à prática. E o simples erro de um poderá significar a morte de todos. 

"Nós Estivemos Lá"
José Dequech


Os canhões
Imagem retirada do site
http://www.exercito.gov.br

A penúria que, por outro lado, rondava os lares dos camponeses, onde tudo faltava, era minorada com a passagem dos brasileiros que, uma ou outra vez, facilitavam os alimentos àquela gente tão necessitada. Os comandos, nessa parte, eram muito condescendentes e mais ainda quando tratava-se das senhoras idosas que passavam necessidade e não tinham como alimentar os filhos. Elas eram, portanto, as mãos que carregavam o maior fardo de amargura, sofrendo pela falta de um filho ou do marido que os fascistas levaram e não mais voltou, pela falta de alimentos, pela Pátria invadida ou então pelo barbarismo dos nazistas. Mas que, apesar disso tudo, ainda nos chamavam carinhosamente de "figlio mio", fazendo as vezes da nossa mãe. E nós, da mesma forma, passamos a tratá-las de "mamma". Uma delas, que hoje tenho a certeza está bem segura no céu, era a "Signora Nella". Lembro-me, a propósito, de uma passagem com o Berberino. Quem mais solidário e mais humano do que ele? Pois bem. Sabendo de uma casa onde morava uma senhora grisalha, com seus 50 anos, que vivia na maior pobreza e não tinha como alimentar duas crianças, achou-se no dever de ajudá-los. No rancho, conseguiu uma porção de alimentos que achou os mais necessários, esperou pela noite e, com um pacote debaixo do braço, foi bater na porta da tal casa. Atendido pela senhora, cumprimentou-a com um amável "buona notte, mamma". Ela nem respondeu. Assustada com o atrevimento de um negro com cara de macaco chamando-a de "mamma", e ainda mais àquelas horas, era até justo que se amedrontasse, mas mandou-o entrar. Lá dentro, o Berberino abriu o pacote sobre uma mesa, dizendo que era pouco, dava para alguns dias e que em outra oportunidade traria mais. E já ia saindo, quando a mulher, vendo açúcar, farinha de trigo, café, pão e até mesmo chocolate para as crianças, abraçou o crioulo e, beijando-o na face, disse: "grazie tante, figlio mio". Afinal de contas, a cordialidade e o sentimento humanitário do brasileiro estavam à prova e cabia a todos nós, como representantes da nossa Pátria, não só portar-nos com bravura nos campos de batalha, mas também mostrar aos outros povos a nossa formação moral, nossos hábitos, civilização e cultura.
E todos se esforçaram para isso.

"Nós Estivemos Lá"
José Dequech


Soldado Berberino - o "Bascuia", José Dequech e o cachorrinho Wamp
Alessandria, maio de 1945.
Foto escaneada do livro "Nós Estivemos Lá" - José Dequech

No dia 10 de janeiro, quando o frio era de rachar, alguém encontrou uma ninhada de cachorrinhos guaipecas ao lado das nossas posições. Adotamos um deles, de cor branca, que batizamos de "Wamp" e que ao ficar sob os cuidados dos cozinheiros, que o alimentaram na base de mingau de aveia, rapidamente entendia a nossa língua. O mascote da Companhia não cresceu muito. Tinha pequeno porte, mas era muito valente e não se amedrontava com o estrondo dos canhões, nem mesmo com as granadas que caíam. Muito pelo contrário: no corre-corre dos pracinhas que saíam para executar uma missão de tiro, o "Wamp" era um dos primeiros, corria na frente e ia se colocar ao lado do Comandante da linha de fogo, como se a sua presença fosse imprescindível naquela hora. (...)  No dia 2 de setembro, exatamente há dois dias do embarque para o Brasil, um italiano envenenou o cachorro "Wamp", nosso mascote, nascido nas posições de Cá di Maggio, que durante oito meses acompanhou a Companhia de Obuses na guerra. O que ele fez realmente, para merecer este castigo, ninguém chegou a saber. Talvez nem tivesse feito nada. Quem sabe, correu atrás de uma galinha do italiano que, desconhecendo o valor inestimável que aquele cãozinho representava para nós, fez tamanha malvadeza. Quando foi encontrado, o pobrezinho estava contorcendo-se em dores, uivando como que pedindo pela nossa ajuda. Dali, ele foi levado às pressas para ser atendido na enfermaria da Companhia de Obuses, onde fizeram de tudo para salvá-lo, mas de nada adiantou. Ele não resistiu à dose excessiva de veneno e morreu à tardinha, deixando uma tristeza muito grande que tomou conta do acampamento. No mesmo dia, os homens da Companhia enlearam o corpo do animalzinho num pano branco e o levaram à sepultura, numa cova rasa que abriram ao lado do cemitério de Francolise. Lá, fincaram uma cruz, sobre a qual colocaram a coleira. E na hora do adeus, quando alguém fez uma rápida prece, todos os presentes elevaram os seus pensamentos para o céu. Se é que também existe céu pra cachorro - e eu creio que sim -, o "Wamp", todo branquinho como a neve sobre a qual nasceu, com o olhar meigo e sacudindo o seu rabinho, por certo lá estará acompanhando os passos de São Pedro de um lado para outro.

"Nós Estivemos Lá"
José Dequech


Um Herói nunca morre!

Simples História de um Homem Simples
As Origens
Força Expedicionária Brasileira
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